segunda-feira, 21 de outubro de 2013

ESTUDO DA MEMORIA

Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. O ESTUDO DA MEMÓRIA ATRAVÉS DE UMA ABORDAGEM INTERPRETATIVA1 Henrique Fernandes ANTUNES2 RESUMO O presente trabalho tem o intuito de abordar questões epistemológicas e metodológicas sobre o estudo da memória. Em um primeiro momento, trata-se de uma reflexão sobre a memória enquanto um fenômeno social passível de estudo pelas ciências sociais. Partindo dessa perspectiva, será realizada uma discussão sobre a possibilidade de apreender o fenômeno em pauta a partir de uma abordagem interpretativa. Palavras-chave: Memória. Fenômeno social. Abordagem interpretativa. O intuito do presente trabalho consiste em averiguar a relevância da memória – entenda-se aqui o seu aspecto social – para as ciências sociais, considerando as implicações epistemológicas e metodológicas que envolvem seu estudo a partir de uma abordagem interpretativa. Em um primeiro momento, a memória diz respeito à questão do indivíduo, ou seja, ao próprio lócus da memória. Esse enfoque é evidente em Portelli, pois, ao definir a história oral como a ciência e a arte do indivíduo, pressupõe que a memória está intrinsecamente ligada à experiência pessoal – pelo menos no caráter fenomenológico –, ao sujeito que realiza o ato de rememorar. A História Oral é uma ciência e arte do indivíduo. Embora diga respeito – assim como a sociologia e a antropologia – a padrões culturais, estruturas sociais e processos históricos, visa aprofundá-los, em essência, por meio de conversas com pessoas sobre a experiência e a memória individuais e ainda por meio do impacto que estas tiveram na vida de cada uma. (PORTELLI, 1997, p. 15) Contudo, o autor reconhece que apesar de a memória constituir-se enquanto um processo essencialmente individual remete ao mesmo tempo a aspectos sociais e padrões culturais. Em outros termos, a memória compreende dois níveis concomitantemente: um 1 Artigo referente ao primeiro capítulo do Trabalho de Conclusão de Curso, Santo Daime e Memória: uma abordagem interpretativa, no ano de 2008 pela UNESP - Universidade Estadual Paulista – FFC – Campus de Marília. Orientadora: Dra. Rosângela de Lima Vieira, professora do departamento de Ciências Sociais da UNESP-FFC. hictune@yahoo.com 2 Aluno do Bacharelado em Antropologia do curso de Ciências Sociais da UNESP-FFC. Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. 320 individual e outro social. O caráter social e cultural da memória é conseqüência da interação entre indivíduo e meio social, contudo, a apreensão das experiências concretas através do ato de rememorar, é exclusivamente pessoal. Por isso a existência de semelhanças, distinções, ou mesmo contradições em relatos e depoimentos acerca de um acontecimento específico não se caracteriza como fato peculiar para o estudo da memória, pelo contrário, seu caráter individual impede a possibilidade da existência de memórias exatamente iguais. A essencialidade do indivíduo é salientada pelo fato da História Oral dizer respeito a versões do passado, ou seja, à memória. Ainda que esta seja sempre moldada de diversas formas pelo meio social, em última análise, o ato e a arte de lembrar jamais deixam de ser profundamente pessoais. A memória pode existir em elaborações socialmente estruturadas, mas apenas os seres humanos são capazes de guardar lembranças. Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, a memória é social, tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada pelas pessoas. A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim como as impressões digitais, ou, bem da verdade, como as vozes – exatamente iguais. (ibid., p. 16) Refletindo tal questão, a partir da análise de relatos de membros do culto do Santo Daime, Goulart ressalta que a existência de distinções em depoimentos que versam sobre o mesmo tema, ou, até mesmo mais de uma versão sobre determinado evento, não implica a impossibilidade de uma apreensão dos acontecimentos. Pelo contrário, tais distinções podem ser apreendidas em um nível menos subjetivo. (...) gostaria de esclarecer que embora eu esteja separando dois tipos de relatos, na verdade eles muitas vezes se misturam. Contudo, creio que a distinção que fiz entre eles ainda é válida. Pois, mesmo no caso de autênticas versões míticas, pode-se visualizar, nas falas dos nativos, colagens entre fragmentos das várias versões. Mas isto não significa que, num outro nível, menos subjetivo, tais distinções não possam ser apreendidas. (GOULART, 1998, p. 69) Nesse sentido, o historiador Jacques Le Goff aponta como aspecto corriqueiro a presença de distinções nas formas de expressões culturais mitológicas comum em Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. 321 sociedades tradicionais – principalmente no que tange povos sem escrita –, cuja tradição oral e a memória, enquanto projeções sociais, representam aspectos constitutivos de grande importância. Mas é necessário sublinhar que, contrariamente ao que em geral se crê, a memória transmitida pela aprendizagem nas sociedades sem escrita não é uma memória “palavra por palavra”. Goody, provou-o estudando o mito do Bagre recolhido entro os lodagaas do norte do Gana. Observou as numerosas variantes nas diversas versões do mito, mesmo nos fragmentos mais estereotipados. Os homens memória, na ocorrência narradores, não desempenham o mesmo papel dos mestres-escolas (e a escola não aparece senão com a escrita). Não se desenvolve em torno deles uma aprendizagem mecânica automática. Mas, segundo Goody, nas sociedades sem escrita, não há unicamente dificuldades objetivas na memorização integral, palavra por palavra, mas também o fato de que “este gênero de atividade raramente é sentido como necessário”; “o produto de uma rememoração exata” aparece nestas sociedades como “menos útil, menos apreciável que o fruto de uma evocação inexata” (1977 a, p.38). Assim, constata-se raramente a existência de procedimentos mnemotécnicos nestas sociedades (um dos casos raros é o quipo peruano, clássico na literatura etnológica). A memória coletiva parece, portanto, funcionar nestas sociedades segundo uma ‘reconstrução generativa” e não segundo uma memorização mecânica. Assim, segundo Goody, “o suporte da rememorização não se situa ao nível superficial em que opera a memória da ‘palavra por palavra’, nem ao nível das estruturas ‘profundas’ que numerosos mitólogos encontram [...]. Parece, ao contrário, que o papel importante cabe à dimensão narrativa e a outras estruturas da história cronológica dos acontecimentos” (événementielles) (LE GOFF, 2003, p. 425-426) Assim, por se tratar de um fenômeno concomitantemente individual e coletivo, a memória apresenta-se enquanto processo dinâmico em permanente mudança, ligando o sujeito histórico ao grupo social, e a um momento específico no tempo. Este aspecto dual leva Diehl a afirmar que a memória é capaz de representar possibilidades de aprendizagem e de socialização influenciando na construção de uma identificação cultural. Memória possui contextualidade e é possível ser atualizada historicamente. Ela possui maior consistência do que lembrança, uma vez que é uma representação produzida pela e através da experiência. Constitui-se de um saber, formando tradições, caminhos – como canais de comunicação entre dimensões temporais –, ao invés de rastros e restos como no caso da lembrança. A memória pode constituir-se de elementos individuais e coletivos, fazendo parte de perspectivas de futuro, de utopias, de consciências do passado e de sofrimentos. Ela possui a capacidade de instrumentalizar canais de comunicação para a consciência histórica e cultural, uma vez que pode abranger a totalidade do passado Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. 322 num determinado corte temporal. (...) Nesse nível, ela representa possibilidades de aprendizagem e de socialização, expressando assim continuidade e identidade daquelas tradições. (DIEHL, 2002, p. 116-117) É nesse sentido que Nora diferencia memória e história. De acordo com o autor, enquanto a memória se apresenta enquanto vida, visto que levada adiante por grupos vivos, encontrando-se em “permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento” (NORA, 1993, p.9), a história apresenta-se enquanto “reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais” (ibid, p. 9). Deste modo, o autor conclui que “a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história uma representação do passado” (ibid, p. 9). No entanto, cabe ressaltar que o aspecto atual da memória apresenta implicações importantes sobre seus limites. Enquanto processo em permanente evolução, a memória apresenta a impossibilidade de apreender os acontecimentos na forma como eles realmente aconteceram. Contudo, a partir da perspectiva de Sahlins, saber o que realmente aconteceu não depende apenas de uma descrição das ações e acontecimentos, mas da apreensão do significado da experiência e das ações. (...) para saber o que realmente aconteceu, seria insuficiente assinalar que certas pessoas agiram de certos modos, a não ser que soubéssemos o significado dessas ações. Aquilo que é contingente só se torna plenamente histórico quando é significativo: somente quando o ato pessoal ou efeito ecológico toma um valor de posição ou sistemático em um esquema cultual. Uma presença histórica é uma presença cultural. (SAHLINS, 1990, p.144, grifo meu) A história não é somente a contingência de fatos e acontecimentos, mas o significado de tais experiências para um grupo determinado. Partindo do princípio que o significado é parte integrante e fundamental para qualquer evento, este pode então ser observado a partir de dois planos: enquanto ação individual e enquanto representação coletiva. (...) o evento (qualquer evento) se desdobra simultaneamente em dois planos: como ação individual e como representação coletiva; ou melhor, como a relação entre certas histórias da vida e uma acima e além dessas outras. Parafraseando Clifford Geertz, o evento é uma atualização única de um fenômeno geral (1961:153-54). Assim, por um lado, temos a contingência histórica e as particularidades da ação individual; e, por outro, aquelas dimensões recorrentes do evento, onde podemos reconhecer uma certa ordem cultural. O paradoxo para uma “ciência” Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. 323 histórica é que as circunstâncias contingentes – tais como acidentes biográficos ou geográficos – são condições necessárias. (ibid., p.143-44) Outra questão que deve ser aprofundada é a relação entre memória e identidade apontada por Diehl. De acordo com Marcus (1991), a memória individual ou coletiva é considerada enquanto prova do auto-reconhecimento, em um âmbito local, da identidade. Contudo, o autor aponta que a compreensão de processos sociais na modernidade envolve uma desconstrução da concepção de tradições ou vidas comunitárias restritas a um espaço geográfico definido. Para Marcus, a dificuldade em captar a memória enquanto processo social remete justamente a inadequação do conceito de comunidade no que tange a modernidade. Além disso, a erosão da distinção público/privado no que concerne a vida cotidiana, o deslocamento da oralidade e da narração para outra função além de sua original ligada a transmissão da memória, são exemplos de fatores apontados por Marcus que tornam a descrição e compreensão da memória uma tarefa difícil para a modernidade. O passado que continua presente é construído a partir da memória, que é o agente fundamental da etno-história. Numa etnografia modernista, a memória coletiva e individual, nos seus múltiplos sinais e expressões, é tomada como prova do auto-reconhecimento, ao nível local da identidade. Ainda que o significado da memória como agente vinculador e como processo que relaciona a história com a formação da identidade tenha bastante aceitação junto aos etnógrafos contemporâneos, uma reflexão analítica e metodológica sobre a memória ainda não se desenvolveu. Contudo, é mais um fenômeno difuso da modernidade que permite a compreensão dos processos da diversidade que derivam, não de tradições enraizadas ou da vida comunitária, mas da sua emergência no seio de outras associações que se processam na memória coletiva e na individual. A dificuldade de captar a memória de forma descritiva enquanto processo social ou coletivo, na modernidade, está relacionada com a inadequação do conceito de comunidade no que se refere à conceitualização do plano espacial da etnografia, como apontado acima. A erosão da distinção público/privado na vida cotidiana (...), aliada ao deslocamento – na era da informática – da oralidade e da narração de estórias para outra função além da sua função original de reserva de memória (tida também como condição da vida na comunidade, como concebida originalmente), tornam a compreensão e descrição de qualquer “arte de memorizar” especialmente problemática na modernidade. (MARCUS, 1991, p. 205-206) Apesar do estudo da memória na contemporaneidade apresentar questões mais amplas e complexas, pode-se afirmar, a partir da discussão levantada, que esta origina-se de Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. 324 um processo dinâmico de interação entre indivíduo e meio social, ela é coletiva e ao mesmo tempo individualizada, é viva, pois diz respeito aos sujeitos históricos e à dialética da lembrança e do esquecimento, é capaz de instrumentalizar canais de comunicação para uma apreensão histórica e cultural, representa possibilidades de aprendizagem e socialização, formando tradições e influenciando na construção de identidades. A partir de apreensões tão complexas, é necessário escolher um caminho a ser seguido para abordar o estudo da memória. Não há como trata-la enquanto algo exclusivamente pessoal. Tampouco considerala apenas um produto social, pois a torna sem substância, retirando o aspecto vivo do processo de construção da memória. Nem um extremo, nem outro. É fato que a memória se expressa em ambos os níveis, contudo, no que concerne às ciências humanas – ou, mais especificamente, às ciências sociais – é seu caráter enquanto fenômeno social, cujas manifestações podem ser percebidas, apreendidas e analisadas, que importa, pelo menos no que concerne às ciências sociais. Pode-se estabelecer um paralelo entre afirmação o caráter social da memória e a concepção do antropólogo Clifford Geertz acerca da natureza social do pensamento. Para Geertz: O pensamento humano é rematadamente social: social em sua origem, em suas funções, social em suas formas, social em suas aplicações. Fundamentalmente, é uma atividade pública – seu habitat natural é o pátio da casa, o local do mercado e a praça da cidade. (GEERTZ, 1989, p. 225) Assim, é precisamente a concepção do pensar enquanto ato social que apresenta um papel significativo para as ciências sociais: (...) a concepção do pensar como sendo basicamente um ato social, que ocorre no mesmo público em que ocorrem outros atos sociais, pode desempenhar um papel muito construtivo. A perspectiva de que o pensamento não consiste em processos misteriosos localizados naquilo que Gilbert Ryle chamou de gruta secreta na cabeça, mas num tráfico de símbolos significantes – objetos em experiência (rituais e ferramentas; ídolos esculpidos e buracos de água; gestos, marcações, imagens e sons) sobre os quais os homens imprimiram significado – faz do estudo da cultura uma ciência positiva como qualquer outra. (ibid., p. 227) A proposição de encarar o pensamento enquanto ato social não anula a questão individual pelo simples fato de serem os homens que pensam. Contudo, o autor foge da concepção ingênua que o pensamento é algo estritamente individual ao afirmar que os Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. 325 sistemas de símbolos que orientam e definem o pensamento humano “não são dados pela natureza das coisas – eles são construídos historicamente, mantidos socialmente e aplicados individualmente” (ibid., p.229). Adaptando o pensamento de Geertz para o objetivo do presente artigo, porém, sem deturpá-lo, é possível considerar a memória enquanto um ato social, pois implica necessariamente um “tráfico de símbolos significantes”, especialmente em se tratando da memória de um grupo social específico. Diehl apresenta uma concepção parecida, mas voltada à questão do papel da memória para a história: “Para a história, não são as memórias e identidades os pontos centrais, mas as suas respectivas representações nas experiências e expectativas de vida” (Idem, p. 113). O autor continua: “se pensarmos memória dentro dessa perspectiva, então ela não aparece como fonte de informações para o conhecimento histórico, mas como expressão do próprio pensar histórico” (DIEHL, 2002, p. 120). Com efeito, apreender a memória enquanto expressão do pensar histórico, ou como tráfico de símbolos significantes possibilita ir além do caráter individual do processo de rememorização para enfocar suas formas sociais e culturais. Essa é uma questão epistemológica central. Como algo que está necessariamente vinculado a experiência individual pode ser objeto de estudo das ciências sociais? Partindo do princípio que indivíduo percebe, apreende, interpreta, dota de significado e imprime sentido ao mundo que o cerca a partir do convívio social, é possível encarar a memória enquanto um ato social, enquanto uma expressão do pensar histórico. Além da preocupação epistemológica, há questões metodológicas a serem apontadas. A principal delas consiste em refletir o papel do pesquisador na produção do conhecimento. Especialmente no caso da memória, o objeto de pesquisa não é palpável, não é possível visualizá-la, não está presente na realidade social concreta, tampouco se pode medir ou quantifica-la. Na medida em que não se lida com fatos concretos, é necessário que o pesquisador admita o caráter interpretativo da pesquisa científica, assumindo em contrapartida a consciência de sua subjetividade na produção do conhecimento, tendo em vista que este processo não fornece uma percepção completa de um fenômeno ou garante acesso à verdade. A objetividade científica não consiste em nos ausentarmos da cena do discurso e em simularmos uma neutralidade que é tanto impossível Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. 326 quanto indesejável. Essa objetividade consiste, antes, em assumir a tarefa de interpretação, que cabe aos intelectuais. (...) A responsabilidade pela interpretação, é óbvio, não chega a reivindicar, para nossas interpretações, acesso completo e exclusivo à verdade. (PORTELLI, 1997,p. 26-27) Nessa ótica, Schaff aponta, baseando-se no Trabalho de Pirene, que a produção do historiador é concomitantemente síntese e hipótese. O trabalho do historiador, como diz Henri Pirene, é ao mesmo tempo uma síntese e uma hipótese: uma síntese na medida em que o historiador tende a reconstituir a totalidade da imagem a partir do conhecimento dos fatos particulares; uma hipótese na medida em que as relações estabelecidas entre esses fatos não são nunca absolutamente evidentes nem verificáveis. (...) Sublinhar o caráter hipotético dos resultados do trabalho do historiador, é apreender em outros termos o papel que desempenha o fator subjetivo neste trabalho. (SCHAFF, p. 285) Tais questões não se encerram no campo da historiografia, pelo contrário, englobam outros campos das ciências humanas dedicadas aos estudos culturais. Retomando o pensamento de Geertz, que chega ao ponto de afirmar sobre a produção de textos antropológicos, que estes se enquadram enquanto ficções, não por constituírem-se enquanto proposições falsas, mas por tratar-se interpretações e construções orientadas com o intuito de apresentar uma descrição acerca do objeto de estudo. Nas palavras do autor: Resumindo, os textos antropológicos são eles mesmos interpretações e, na verdade, de segunda e terceira mão. (Por definição, somente um “nativo” faz a interpretação em primeira mão: é a sua cultura.) Trata-se, portanto, de ficções; ficções no sentido de que são “algo construído”, “algo modelado” – o sentido original de fictio – não que sejam falsas, não-fatuais ou apenas experimentos do pensamento. (GEERTZ, 1989, p.11) Assim, o autor chega à conclusão que a descrição etnográfica apresenta necessariamente três características, a saber: “ela é interpretativa; o que ela interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o “dito” num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis” (ibid., p. 15) Considerando a discussão levantada, é inevitável que qualquer pesquisa que se pretenda realizar carregue certo grau de subjetividade. Nas ciências humanas principalmente, esse pressuposto pode ser contrabalançado por uma abordagem interpretativa. No caso do estudo da memória, as opções epistemológicas e metodológicas Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. 327 remetem a um grau de subjetividade que envolve não somente tais escolhas, mas a forma como a pesquisa é levada a cabo. Nesse âmbito, a perspectiva interpretativa possibilita ao pesquisador certo grau de objetividade na medida em que parte do princípio que o trabalho intelectual é uma construção que, em momento algum, pretende reivindicar para si a posse de uma verdade definitiva. O presente artigo teve como objetivo principal discutir questões relevantes ao estudo da memória na contemporaneidade, apontando alguns pontos básicos e problemas levantados por autores que pensam a memória na modernidade. O intuito seria, partilhando da concepção de Geertz, de uma abertura nas possibilidades de apreender as relações sociais e simbólicas que os seres humanos constroem ao interagirem socialmente. Nesses termos, um trecho da obra do autor exprime a intenção primeira do texto. A antropologia, ou pelo menos a antropologia interpretativa, é uma ciência cujo progresso é marcado menos por uma perfeição de consenso do que um refinamento do debate. (...) não há conclusões a serem apresentadas; há apenas uma discussão a ser sustentada. (ibid, 1989, p.38) REFERÊNCIAS DIEHL, Astor Antonio. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação. Bauru, SP: EDUSC, 2002. GEERTZ, Clifford. A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro:Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989. GOULART, Sandra Lúcia. As raízes culturais do Santo Daime. Tese (mestrado em antropologia social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Unicamp, 2003. MARCUS, George. Identidades passadas, presentes e emergentes: requisitos para etnografias sobre a modernidade no final do século XX ao nível mundial. Revista de Antropologia, v. 34, 1991. Revista de Iniciação Científica da FFC, v. 8, n.3, p. 319-328, 2008. 328 NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História , 10. História e Cultura: São Paulo – PUC/SP, 1993. PORTELLI, Alessandro. Tentando aprender um pouquinho: algumas reflexões sobre a ética na História Oral. Projeto História 15. São Paulo, 1997. SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. SCHAFF, Adam. História e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 1983. ARTIGO RECEBIDO EM 2008

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