domingo, 16 de março de 2014

HISTÓRIA DAS IGREJAS

HISTÓRIA DO Cristianismo Dos apóstolos do Senhor Jesus ao século XX Todos os Direitos Reservados. Copyright (Q) 1984 para a língua por-tuguesa da Casa Publicadora das Assembléias de Deus. CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Knight, A. E. K77h História do cristianismo / A. E. Knight [e] W. Anglin. – 2ª ed. - Rio de Janeiro : Casa Publicadora das As¬sembléias de Deus, 1983. 1. História eclesiástica I. Anglin, W., colab. II. Título CDD - 270 83-0760 CDU - 27 Código para Pedidos: HT-905 Casa Publicadora das Assembléias de Deus Caixa Postal, 331 20001 Rio de Janeiro, RJ, Brasil 11a Edição 2001 Índice 1. Primeiro século da Era Cristã 2. Segundo século da Era Cristã 3. Quinta e sexta perseguições gerais 4. Sétima e oitava perseguições gerais 5. Nona e décima perseguições gerais 6. Quarto século da Era Cristã 7. Período semelhante a Pérgamo 8. Período semelhante a Tiatira 9. Nestorianos, paulícios e maometanos 10. Idolatria romana e o poder papal 11. Período mais tenebroso da Idade Média 12. Depois do ano do terror 13. Primeira cruzada 14. Da segunda à quarta cruzada 15. Da quinta à oitava cruzada 16. Perseguição na Europa e a Inquisição 17. Influência papal sobre a Reforma 18. O princípio da Reforma 19. Os reformadores antes da Reforma 20. Lutero e a reforma alemã 21. Zwínglio e a reforma suíça 22. Zelo de Lutero na Reforma 23. 0 formalismo depois da Reforma 24. Período semelhante a Sardo 25. Reforma na França e Suíça francesa 26. Reforma na Itália e outros países europeus 27. Reforma inglesa, no reinado de Henrique VIII 28. Auxílios e obstáculos à reforma inglesa 29. Reforma nos reinados de Eduardo VI, Maria e Isabel 30. História da Igreja desde a Reforma 1 Primeiro século da Era cristã A história da Igreja de Deus tem sido sempre, desde a era apostólica até o presente, a história da graça divina no meio dos erros dos homens. Muitas vezes se tem dito isso, e qualquer pessoa que examine essa história com atenção não pode deixar de se convencer que assim é. Lendo as Epístolas do Novo Testamento vemos que mesmo nos tempos apostólicos o erro se manifestou, e que a inimizade, as contendas, as iras, as brigas e as discór¬dias, com outros males, tinham apagado o amor no coração de muitos crentes verdadeiros. Deixaram as suas primeiras obras e o seu primeiro amor e alguns que tinham principiado pelo espírito, pro¬curavam depois ser aperfeiçoados pela carne. Mas havia muito mais do que isso. Não somente exis¬tiam alguns verdadeiros crentes em cujas vidas se viam muitas irregularidades, e que procuravam, pelas suas pa¬lavras, atrair discípulos a si, como também havia outros que não eram de modo algum cristãos, mas que entraram despercebidamente entre os irmãos, semeando ali a discór¬dia. Isto descreve o estado de coisas a que se referem os primeiros versículos do capítulo dois de Apocalipse, na carta escrita ao anjo da igreja em Éfeso. TEMPOS DE PERSEGUIÇÃO Porém estava para chegar um tempo de perseguição para a Igreja, e isso foi permitido pelo Senhor, na sua gra¬ça, a fim de que se pudessem distinguir os fiéis. Esta perseguição, instigada pelo imperador romano Nero, foi a primeira das dez perseguições gerais que conti¬nuaram, quase sem interrupção, durante três séculos. "Por que razão permite Deus que o seu povo amado so¬fra assim?"Muitas vezes se tem feito esta pergunta, e a resposta é simples: é porque Ele ama esse povo. Podia ha¬ver, e sem dúvida há, outras razões, porém a principal é esta - Ele o ama. "Porque o Senhor corrige o que ama ' e se o coração se desviar, tornar-se-á necessária a disciplina. Com que facilidade o mal se liga, mesmo ao melhor dos homens! Mas, na fornalha da aflição, a escória separa-se do metal precioso, sendo aquela consumida. Ainda mais, quando suportamos a correção de Deus, Ele nos trata como filhos; e se sofremos com paciência, cada provocação pela qual Ele nos faz passar dará em resultado mais uma bên¬ção para a nossa alma. Tal experiência não nos é agradá¬vel, nem seria uma provocação se o fosse, porém, à noite de tristeza sucede a manhã de alegria, e dizemos com o salmista Davi: "Foi bom para mim, ter sofrido aflição". PORQUE E QUE DEUS PERMITE A PERSEGUIÇÃO Mas Deus permite, algumas vezes, que a malvadez leve o homem muito longe em perseguir os cristãos, a fim de fi¬car manifestado o que está no seu coração, e por isso não é de estranhar que na alma do cristão que não tem apreciado esta verdade se levantem dúvidas e dificuldades, e que co¬mece a queixar-se de o caminho ser custoso, e da mão do opressor ser pesada sobre ele. 8 O Senhor porém não nos deixa na Terra para nós nos queixarmos das dificuldades, nem para recuarmos diante da ira dos homens: temos de servir ao Mestre e resistir ao inimigo, porém é somente quando estamos fortalecidos no Senhor e na força do seu poder que podemos prestar esse serviço, ou resistir efetivamente a esse inimigo. Esta história pretende indicar quão dignamente se fez isto nos tempos passados, porém se quisermos compreen¬der a maneira como Deus tem tratado o seu povo, sempre nos devemos lembrar de que a milícia cristã é diferente de qualquer outra, e que uma parte da sua resistência é o so¬frer. As armas da nossa milícia não são carnais, mas sim es¬pirituais, e o cristão que se serve de armas carnais mostra sem dúvida que não aprecia o caráter do verdadeiro crente. Não pode ter apreciado com inteligência espiritual o cami¬nho do seu Senhor, ou compreendido o sentido das suas palavras: "O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo pelejariam os meus servos". A igreja militante é uma igreja que sofre, mas se empre¬gar as armas carnais, deixa na verdade de combater. No ousado e santo Estêvão temos um exemplo do ver¬dadeiro crente militante. Foi ele o primeiro mártir cristão. E que grande vitória ele ganhou para a causa de Cristo quando morreu pedindo ao Senhor pelos seus perseguido¬res! Davi, séculos antes da era cristã, disse: "O justo se ale¬grará quando vir a vingança : lavará os seus pés no sangue do ímpio", porém Estêvão, que viveu na época cristã, orou:"Senhor, não lhes imputes este pecado". Isto foi um exemplo da verdadeira milícia cristã. A primeira onda da perseguição geral que veio sobre a igreja fez-se sentir no ano 64, no reinado do imperador Ne-ro, que tinha governado já com uma certa tolerância du¬rante nove anos. Neste tempo, o assassinato de sua mãe, e a sua indife¬rença brutal depois de ter praticado aquele crime tão monstruoso, mostrou claramente a sua natural disposição, e indicou ao povo aquilo que havia de esperar dele. Desgra¬çadamente, as tristes apreensões que muitos tinham a seu respeito tornaram-se em negra realidade. ROMA INCENDIADA Uma noite no mês de julho, no ano acima citado, os ha¬bitantes de Roma foram despertados do sono pelo grito de "Fogo!" Esta terrível palavra fez-se ouvir simultaneamen¬te em diversas partes da cidade, e dentro de poucas horas a majestosa capital ficou envolvida em chamas. A grande arena situada entre os montes Palatino e Aventino, onde cabiam 150.000 pessoas, em pouco tempo estava ardendo, assim como a maior parte dos edifícios públicos, os monu¬mentos, e casas particulares. O fogo continuou por espaço de nove dias, e Nero, por cujas ordens se tinha praticado este ato tão monstruoso, presenciou a cena da torre de Mecenas, onde manifestou o prazer que teve em ver a beleza do espetáculo, e, vestido como um ator, acompanhando-se com a música da sua li¬ra, cantou o incêndio da antiga Tróia! O grande ódio que lhe votaram em conseqüência deste ato, envergonhou-o e tornou-o receoso; e com a atividade que lhe deu a sua consciência desassossegada, logo achou o meio de se livrar dessa situação. O rápido desenvolvimento do cristianismo já tinha levantado muitos inimigos contra essa nova doutrina. Muita gente havia em Roma que esta¬va interessada na sua supressão - por isso não podia haver nada mais oportuno, e ao mesmo tempo mais simples para Nero, do que lançar a culpa do crime sobre os inofensivos cristãos. Tácito, um historiador pagão, que não era de modo al¬gum favorável ao cristianismo, fala da conduta de Nero da seguinte maneira: "Nem os seus esforços, nem a sua generosidade para com o povo, nem as suas ofertas aos deuses, podiam pagar a infame acusação que pesava sobre ele de ter ordenado que se lançasse fogo à cidade. Portanto, para pôr termo a este boato, culpou do crime, e infligiu os mais cruéis casti¬gos, a uns homens... a quem o vulgo chamava cristãos", e acrescenta: "quem lhes deu esse nome foi Cristo, a quem Pôncio Pilatos, procurador do imperador Tibério, deu a morte durante o reinado deste. "Esta superstição perniciosa, assim reprimida por al¬gum tempo, rebentou de novo, e espalhou-se não só pela Judéia, onde o mal começara, mas também por Roma, para onde tudo quanto é mau na terra se encaminha e é praticado. Alguns que confessaram pertencer a essa seita foram os primeiros a ser presos; e em seguida, por informa¬ções destes prenderam mais uma grande multidão de pes¬soas, culpando-as, não tanto do crime de terem queimado Roma, mas de odiarem o gênero humano". É quase escusado dizer que os cristãos não nutriam ó-dio algum pela humanidade, mas sim pela terrível idola¬tria que prevalecia em todo o Império Romano; e só por este motivo eram considerados como inimigos da raça hu¬mana. CRUÉIS TORMENTOS DOS CRENTES Não se sabe quantos sofreram por essa ocasião, mas de certo foram muitos, e eram-lhes aplicadas todas as tortu¬ras que um espírito engenhoso e cruel podia imaginar, para satisfazer os depravados gostos do imperador. "Alguns foram vestidos com peles de animais ferozes, e perseguidos pelos cães até serem mortos, outros foram cru¬cificados; outros envolvidos em panos alcatroados, e de¬pois incendiados ao pôr do sol, para que pudessem servir de luzes para iluminar a cidade durante a noite. Nero ce¬dia os seus próprios jardins para essas execuções e apresen¬tava, ao mesmo tempo, alguns jogos de circo, presenciando toda a cena vestido de carreiro, indo umas vezes a pé no meio da multidão, outras vendo o espetáculo do seu car¬ro". Hegesipo, um escritor do II século, faz algumas refe¬rências interessantes sobre o apóstolo Tiago, que acabou a sua carreira durante esse período, e fornece um detalhado relatório do seu martírio, que podemos inserir aqui. "Consta que o apóstolo tinha o nome de Oblias, que significava justiça e proteção, devido à sua grande piedade e dedicação pelo povo. Também se refere aos seus costu¬mes austeros, que sem dúvida contribuíram para aumen¬tar a sua fama entre o povo. Ele não bebia bebidas alcoóli¬cas de qualidade alguma, nem tampouco comia carne. Só ele teve licença de entrar no santuário. Nunca vestiu roupa escolhendo ele aquela posição por se achar indigno de so¬frer na mesma posição em que sofreu o seu Senhor. Paulo que sofreu no mesmo dia foi poupado a uma morte tão do¬lorosa e lenta, sendo degolado. "A estes santos apóstolos", acrescenta Clemente, "se ajuntaram muitos outros, que tendo da mesma maneira sofrido vários martírios e tormentos, motivados pela inveja dos outros, nos deixaram um glorioso exemplo. "Pelos mesmos motivos, foram perseguidos, tanto mu¬lheres como homens, e tendo sofrido castigos terríveis e cruéis, concluíram a carreira da sua fé com firmeza." MORTE DE NERO O miserável Nero morreu às suas próprias mãos, no ano 63, cheio de remorsos e de medo; depois da sua morte a igreja teve descanso por espaço de trinta anos. Contudo durante esse tempo Domiciano (que podia quase levar a palma a Nero, quanto à intolerância e crueldade) subiu ao trono; e depois de quatorze anos do seu reinado, rebentou a perseguição geral. Tendo chegado aos ouvidos do imperador que alguém, descendente de Davi, e de quem se tinha dito: "Com vara de ferro regerá todas as nações", vivia na Judéia, fez com que se procedesse a investigação, e dois netos de Judas, o irmão do Senhor Jesus, foram presos e conduzidos à sua presença. Quando ele, porém, olhou para as suas mãos, calosas e ásperas pelo trabalho, e viu que eram uns homens pobres, que esperavam por um reino celeste, e nada queriam saber do reino terrestre, despediu-os com desprezo. Diz-se que eles foram corajosos e fiéis em testemunhar a verdade pe¬rante o imperador, e que, quando voltaram para sua terra natal, foram recebidos com amizade e honras pelos irmãos. PERSEGUIÇÃO A JOÃO Pouco se sabe a respeito desta perseguição; mas esse pouco é sem dúvida interessante. E entre os muitos márti¬res que sofreram, encontra-se João, o discípulo amado de Jesus, e Timóteo, a quem Paulo escreveu com tão afeiçoa-da solicitude. Diz a tradição que o primeiro foi lançado, por ordem do tirano, numa caldeira de azeite fervente mas, por um milagre, saiu de lá ileso. Incapaz de o ferir no corpo, o imperador desterrou-o para a ilha de Patmos, onde foi obrigado a trabalhar nas minas. Foi ali que ele es¬creveu o livro de Apocalipse, e teria sem dúvida terminado ali mesmo a sua vida, se não fosse a inesperada morte do imperador, assassinado pelo próprio administrador da sua casa, no dia 18 de Setembro de 96 d.C. Sendo então o após¬tolo João posto em liberdade, voltou para Éfeso, onde es¬creveu a sua história do Evangelho e as três epístolas que têm o seu nome. Parece que ali, como sempre, foi levado em toda a sua vida pelo amor, e quando morreu, na avançada idade de cem anos, deixou, como legado duradouro, este simples preceito: "Filhinhos, amai-vos uns aos outros". Frase sim¬ples esta, e pronunciada há muitos anos, mas qual de nós tem verdadeiramente aprendido o seu sentido? ASSASSINATO DE TIMÓTEO Timóteo sustentou virilmente a verdade, na mesma ci¬dade, até o ano 97, em que foi morto pela turba numa festa idolatra. Muitos homens do povo, mascarados e armados de paus, dirigiam-se para os seus templos para oferecer sa¬crifícios aos deuses, quando este servo do Senhor os encon-trou. Com o coração cheio de amor, encaminhou-se para eles, e lembrando-se talvez do exemplo de Paulo, que pou¬cos anos antes tinha pregado aos idolatras de Atenas, fa¬lou-lhes também do Deus vivo e verdadeiro. Mas eles não fizeram caso do seu conselho, zangaram-se por serem re¬provados e, caindo sobre ele com paus, bateram-lhe tão desapiedadamente, que expirou poucos dias depois. E agora, lançando a vista por um momento para os tempos passados, encontram-se, de certo, na história destas primitivas perseguições, muitos exemplos para dar ânimo e coragem aos nossos corações. Em vista de tais sofrimen¬tos, não se pode deixar de admirar o ânimo dos santos, e agradecer a Deus a graça pela qual eles puderam suportar tanto com tão sofredora paciência. Nem a cruz, nem a espada nem os animais ferozes, nem a tortura, puderam prevalecer contra aqueles fiéis discípu¬los de Jesus Cristo. Quem os poderia separar do seu amor? Seria a tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fo¬me, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? Não! Em todas essas coisas eles foram mais do que vencedores por meio daquele que os amou. Não lhes dissera o Senhor que de¬viam esperar tudo isso? Não tinha Ele dito aos seus discí¬pulos, quando ainda estava entre eles: "No mundo ter eis aflições"? e não era bastante compensação para os seus so-frimentos, que duraram poucos anos, a brilhante esperan¬ça da glória eterna que Ele lhes tinha dado? Depois de mais alguns anos, tanto perseguidores como perseguidos teriam deixado este mundo, e passado para a eternidade; então - que grande mudança! Para os primei¬ros, a escuridão das trevas para sempre; para os últimos, aquele "peso eterno de glória muito excelente". Que con¬traste! HERESIAS E DISSENSOES Estando para terminar este capítulo, devemos notar a impossibilidade que temos em vista, por causa do pequeno espaço de que dispomos, de enumerar todas as heresias e dissensões que têm entristecido e dividido a Igreja de Deus desde o seu princípio; portanto, apenas nos propomos a lançar a vista para os atos que nos apresentem maior inte¬resse, tanto pela sua especial astúcia, como pela sua gran¬de influência. O gnosticismo era um desses males, e foi talvez a pri¬meira heresia que depois dos tempos dos apóstolos se de¬senvolveu mais. Era um amontoado de erros que tinham a sua origem na cabala dos judeus, uma ciência misteriosa dos rabinos, baseada na filosofia de Platão, e no misticis¬mo dos orientais. Um judeu chamado Cerinto, mestre de filosofia em Alexandria, introduziu parte do Evangelho nesta massa heterogênea da ciência (falsamente assim chamada) e sob esta nova forma foram enganados muitos crentes verdadeiros, e se originou muita amargura e dissensão. Mas havia muito tempo que não se ocupavam com esse erro, nem com muitos que se lhe seguiram, e a Palavra de Deus, que é a única que contém as doutrinas inabalá¬veis da Igreja, já tinha predito que "os homens maus e en¬ganadores irão de mal a pior, enganando e sendo engana¬dos" (2 Tm 3.13). Já o apóstolo Paulo tinha aconselhado o seu filho Timóteo a opor-se aos clamores vãos e profanos que só poderiam produzir maior impiedade (2 Tm 2.16); e se tinha referido, em linguagem inspirada pelo Espírito Santo, às "perversas contendas de homens corruptos de entendimento e privados da verdade" (1 Tm 6.5): "Mas tu, ó homem de Deus", clamou ele, "foge destas coisas, e segue a justiça, a piedade, a fé, a caridade, a paciência, a mansidão. Milita a boa milícia da fé, lança mão da vida eterna, para a qual também foste chamado, tendo já feito boa confissão diante de muitas testemunhas" (1 Tm 4.11, 12). O amado apóstolo já tinha combatido o bom combate e acabado a sua carreira e guardado a fé, e com a consciência que o esperava pronunciou palavras que deviam servir para animar a Igreja de Deus nos tempos futuros: "Pelo demais a coroa da justiça está-me guardada, a qual o Se¬nhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também, a todos os que amarem a sua vinda" (2 Tm 4.7,8). 2 Segundo século da Era cristã REINADOS DE NERVA, TRAJANO E MARCO AURÉLIO Havia apenas dezoito meses que Domiciano tinha mor¬rido, quando a igreja, que ficara isenta de perseguição du¬rante o curto reinado de Coccei Nerva, seu sucessor, come¬çou novamente a sofrer. Nerva era um homem de caráter brando e generoso, e tratou bem os cristãos; e com uma benignidade digna de louvor restabeleceu todos que tinham sido expatriados pela perseguição de Domiciano. Porém, depois de um reinado de dezesseis meses, foi atacado por uma febre, da qual nunca se curou. O seu sucessor, Trajano, deixou os cristãos tranqüilos por algum tempo, mas sendo levado a suspeitar deles, de¬terminou que se renovasse a perseguição, e, sendo possível, que se exterminasse a nova religião, por meios decisivos e severos. Parecia ao seu espírito orgulhoso que o cristianis-mo era uma ofensa, um insulto para a natureza humana, e que o seu ensino era (como efetivamente o era) inteiramente oposto à filosofia dos seus tempos: uma filosofia que ele¬vava os homens a deuses, e tornava a humildade e brandura dos cristãos efeminada e desprezível. Mas Trajano não tinha a crueldade de Nero, nem de Domiciano; e podia-se notar nessa ocasião uma perplexi¬dade e indecisão na sua conduta, que contrastava, de uma maneira notável, com a inflexibilidade de propósito que ordinariamente mostrava nos seus atos. Pela sua carta a Plínio, governador de Bitínia e Ponto, pode-se ver que ele não sentia prazer algum na tortura ou na execução dos seus súditos. Nessa carta diz ele claramente: "Não se deve andar a procura dessa gente" e acrescenta: "se alguém re-nunciar ao cristianismo, e mostrar a sua sinceridade supli¬cando aos nossos deuses, alcançará o perdão pelo seu arre¬pendimento". Em suma, era a religião, e não os seus adep¬tos, que Trajano odiava, UMA CARTA DE PLÍNIO A carta de Plínio ao imperador e a resposta deste, são cheias de interesse. Um dos períodos dessa carta rezava assim: "Todo o crime ou erro dos cristãos se resume nisto: têm por costume reunirem-se num certo dia, antes do romper da aurora, e cantarem juntos um hino a Cristo, como se fosse um deus, e se ligarem por um juramento de não co¬meterem qualquer iniqüidade, de não serem culpados de roubo ou adultério, de nunca desmentirem a sua palavra, nem negarem qualquer penhor que lhes fosse confiado, quando fossem chamados a restituí-lo. Depois disto feito, costumam separar-se e em seguida reunirem-se de novo, para uma refeição simples da qual partilham em comum, sem a menor desordem, mas deixaram esta última prática após a publicação do edital em que eu proibia as reuniões, segundo as ordens que recebi. Depois destas informações julguei muito necessário examinar, mesmo por meio da tortura, duas mulheres que diziam ser diaconisas, mas nada descobri a não ser uma superstição má e excessiva". Isto era tudo o que Plínio podia dizer. Não é para admirar que um homem estranho à graça de Deus visse na religião de Jesus Cristo, desprezado e humilde, apenas uma su¬perstição má e excessiva. Não é motivo de admiração que o urbano e instruído governador, cuja fama era conhecida no mundo inteiro, escrevesse com tal desdém a respeito de um povo cujas opiniões eram diferentes das suas. "O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, por¬quanto se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14). MARTÍRIO DE INÁCIO Inácio, que dizem ter conhecido os apóstolos Pedro e João, e ter sido ordenado bispo de Antioquia pelo apóstolo João, foi martirizado durante essa época. O zelo com que ambi¬cionava sofrer o martírio o expôs a censuras de vários his¬toriadores, e com certa razão. Conta-se que na ocasião em que Trajano visitou Antioquia, ele pediu para ser admitido a presença do imperador, e depois de explicar, por bastan¬te tempo, as principais doutrinas da religião cristã, e mos¬trar o caráter inofensivo daqueles que a professavam, pe¬diu que se fizesse justiça. Contudo o imperador recebeu o seu pedido com desprezo, e depois de censurar aquilo que Trajano se aprazia de chamar a sua superstição incurável, ordenou que fosse levado para Roma e lançado às feras. Enquanto atravessava a Síria, Inácio escreveu várias cartas às igrejas, exortando-as à fidelidade e paciência, e avisando-as seriamente dos erros que se ensinavam. Em uma das epístolas escreve: "Desde a Síria até Roma estou lu¬tando com feras por terra e por mar, de noite e de dia sendo levado preso por dez soldados cuja ferocidade iguala a dos leopardos, e os quais, mesmo quando tratados com brandura, só mostram crueldade. Mas no meio destas iniqüidades, estou aprendendo... Coisa alguma, quer seja visível ou invisível, desperta a minha ambição, a não ser a esperança de ganhar Cristo. Se o ganhar, pouco me importarei que todas as torturas do Demônio me acometam, quer seja por meio do fogo ou da cruz, ou pelo assalto das feras ou que os meus ossos sejam separados uns dos outros e meus membros dilacerados, ou todo o meu corpo esmagado". Quando Inácio chegou a Roma, foi conduzido à arena e, na presença da multidão que enchia o teatro, tranqüila¬mente esperou a morte. Quando o guarda dos leões veio soltá-los da jaula o povo quase enlouqueceu, e batia as pal¬mas e gritava com uma alegria brutal, mas o velho mártir conservou-se firme. "Sou, disse ele, como o trigo debulhado de Cristo, que precisa de ser moído pelos dentes das feras antes de se tor¬nar em pão". Não precisamos entrar nos detalhes dos pou¬cos momentos que se seguiram. O medonho espetáculo acabou-se depressa, e antes de aquela gente ter chegado a suas casas, tinha Inácio recebi¬do a coroa que ambicionara, e estava já com o Senhor na Glória. TRINTA ANOS DE SOSSEGO No ano 117 morreu Trajano, e o seu sucessor, Adriano, continuou as perseguições. E foi só no ano 138, quando An¬tônio Pio subiu ao trono, que os cristãos ficaram de alguma maneira aliviados dessa opressão. Com o seu reinado bran¬do e pacífico começou um período de sossego que durou perto de trinta anos; e durante esse tempo a Palavra de Deus teve livre curso e Cristo foi glorificado. E certo que houve alguns casos isolados de opressão, mas a perseguição geral tinha desaparecido e o Evangelho depressa se espa-lhou por todas as províncias dos domínios romanos. A gloriosa mensagem foi levada para o Ocidente até nas extremidades da Gália e para o Oriente até a Armênia e a Assíria; e milhares daqueles que em vão tinham procurado a paz de coração nas mitologias de Roma e do Egito, escu¬taram avidamente as palavras da vida, e espontaneamente se tornaram discípulos de Cristo. UMA NOVA PERSEGUIÇÃO Contudo, com a subida ao trono de Marco Aurélio, co¬meçou uma nova opressão, e no segundo ano do seu reina¬do, as nuvens da perseguição começaram de novo a amon¬toar-se. As várias inquietações quase se seguiram uma após ou¬tra com espantosa rapidez, e que pareciam, às vezes, per¬turbar as próprias instituições do Império, forneceram um pretexto fácil para a renovação das perseguições; e logo em seguida o antigo ódio pelos cristãos que havia muito estava guardado nos corações dos ímpios, começou mais uma vez a manifestar-se pelo antigo grito "Lancem os cristãos aos leões!" tão terrivelmente familiar aos ouvidos de muitos, e que passou como um sopro pestilento pelo Império Orien¬tal. Assim teve origem a quarta perseguição geral. MARTÍRIO DE POLICARPO A maior força da tempestade que se aproximava sen¬tiu-se na Ásia Menor, onde saíram os novos editos, e o nome de Policarpo, bispo em Esmirna, apareceu brilhan¬temente na lista dos mártires daquele tempo. Ao contrário de Inácio que se expunha desnecessariamente à vontade cega da populaça, Policarpo não recusou escutar os conse¬lhos e pedidos dos seus amigos, e quando viu que estava sendo espiado em Esmirna retirou-se para uma aldeia pró¬xima, e ali continuou o seu trabalho. Sendo perseguido, foi para outra aldeia, exortando o povo que se encontrava no seu caminho; e assim foi viven¬do dessa maneira errante até que os seus inimigos des¬cobriram o lugar onde se refugiava. Então o velho bispo (avisado, segundo dizem, num sonho de que deveria glorificar a Deus, sofrendo morte de mártir) resignou-se com pa¬ciência à vontade de Deus, e entregou o seu corpo às mãos dos oficiais encarregados de o prenderem. Antes de deixar a casa, deu ordem para que lhes dessem de comer; e, em se-guida, parecendo saber antecipadamente o que esperava, encomendou-se a Deus. Diz-se que o fervor de sua oração comoveu de tal maneira os oficiais que eles se arrepende¬ram de ser os instrumentos da sua captura. Montaram-no num jumento, e trouxeram-no para Esmirna, onde estava reunida uma grande multidão para celebrar a festa dos pães asmos. Por consideração pela sua idade avançada e pela sua sabedoria, Nicites, homem de grande influência, e seu filho Herodes, oficial da cidade, foram ao seu encontro e, fa¬zendo-o entrar no seu carro, instaram com ele para que as¬segurasse a sua liberdade, tributando honras a César e consentindo em oferecer sacrifícios aos deuses. Ele recu¬sou-se a isto e, por esse motivo, foi empurrado do carro com tal violência abaixo que na queda torceu uma coxa. Mas o velho servo de Deus continuou pacificamente o seu caminho, sem se perturbar com a rudeza de Herodes, indi¬ferente aos gritos da multidão que, no seu ódio, empurra¬va-o de um lado para outro; e deste modo chegaram à are¬na. POLICARPO E O GOVERNADOR Era este o sítio onde tinham chegado os jogos e exposi¬ções sagradas; e conta-se que na ocasião de entrar na are¬na, uma voz, como que vinda do céu, exclamou: "Sê forte Policarpo, e porta-te como um homem". Seja como for, um poder que não era humano susteve o servo de Deus, e quando o cônsul, comovido com o seu aspecto venerável, pediu-lhe que jurasse pela alma de César, e dissesse: "Fora com os ímpios!" O velho mártir, apontando para os bancos cheios de gente, repetiu com tristeza: "Fora com os ímpios!" "Jurai", disse o governador, compadecido, "e eu vos mandarei embora. Renegai a Cristo." Mas Policarpo respondeu com brandura: "Tenho-o servido durante oiten¬ta e sete anos, e nunca Ele me fez mal. Como posso eu ago¬ra blasfemar contra o meu Rei e Salvador?" "Jurai pela alma de César", repetiu o governador ainda inclinado à compaixão, mas Policarpo respondeu: "Se julgais que hei de jurar pela alma de César como dizeis, e fingis não saber quem eu sou, ouvi a minha confissão livre: sou cristão; e se desejais conhecer a doutrina do cristianis-mo, concedei-me um dia para falar-vos e escutai-me". 0 governador, notando com inquietação o clamor da multi¬dão, pediu ao ancião que abjurasse sua fé, mas Policarpo se negou a fazer isso. Tinham-lhe ensinado a honrar os poderes superiores, e sujeitar-se a eles porque eram ordena¬dos por Deus, mas quanto ao povo, principalmente no es¬tado atual de turbulência em que se encontrava, nada lhe apresentaria em sua defesa. "Tenho à mão animais fero¬zes", disse o governador, "lançar-vos-ei a eles, se não mudardes de opinião" - "Mandai-os vir", disse Policarpo tranqüilamente. O velho peregrino alegrava-se com a perspectiva de se ver prontamente livre de um mundo ímpio e cheio de per¬seguições, e sua tranqüila intrepidez exasperou o governa¬dor, que por esse motivo ameaçou queimá-lo, mas o intré¬pido Policarpo respondeu: "Ameaçais-me com o fogo que arde por um momento, e depressa se apaga, mas nada sabeis da pena futura, e do fogo eterno reservado aos ímpios". O governador perdeu completamente a paciência, mandou um arauto apregoar no meio da arena: "Policarpo é cristão". Esta proclamação foi repetida três vezes, como era de costume e a raiva da população chegou ao auge. Vi¬ram no velho prisioneiro um homem que tinha desprezado os seus deuses, e cujo ensino tinha retirado o povo dos seus templos, e tornou-se geral o grito de: "Lancem Policarpo aos leões!" Mas a hora do espetáculo já tinha passado, e o asiarca que tinha aos seus cuidados os espetáculos públicos recu¬sou-se a fazer a vontade do povo. Se ainda estavam dispos¬tos a dar-lhe a morte, tinham de escolher qualquer outro dia: assim pois, se ouviu imediatamente o grito para que Policarpo fosse queimado. A lenha e a palha estavam ali à mão, e a vítima depois de ser despojada da sua capa, foi le¬vada às pressas para o poste. Queriam pregá-lo a ele, mas Policarpo pediu-lhes para ser simplesmente atado, e con¬cederam-lhe isso. Tendo em seguida recomendado a sua alma a Deus deu o sinal ao algoz, e este logo lançou fogo à palha. Mas, diz a tradição, os acontecimentos maravilhosos do dia ainda não tinham chegado ao seu fim. Por qualquer razão desconhe¬cida, as chamas não tocaram no corpo de Policarpo, e os espectadores, vendo-se enganados, olhavam uns para os outros na maior admiração. Contudo, o ódio venceu a superstição, e pediram ao al¬goz que matasse a vítima a golpes de espada. Assim se fez, o golpe fatal foi imediatamente dado, e naquele momento de cruel martírio, o fiel servo do Senhor entregou a alma a Deus, e ficou para sempre longe do alcance dos seus perse-guidores. OUTROS MARTÍRIOS Muitos outros, em nada inferiores na fé e valor a Poli-carpo, ainda que menos distintos pelas suas aptidões, so¬freram durante esta perseguição, e seria de muito interesse falar de alguns se o espaço permitisse. Seria, por exemplo, interessante falar de Germano, um jovem cristão cuja constância e coragem deram um testemunho tão brilhante da realidade de sua fé, mesmo na hora solene de sua morte, que muitos se converteram; ou de Justino de Nápoles, o qual, tendo estudado todos os sistemas filosóficos, e ocu¬pando um lugar de destaque entre os professores do seu tempo, tomou-se com alegria um discípulo do meigo e sublime Jesus. E maravilhoso dizer que ele depois selou com o seu sangue o testemunho que tinha dado e alcançou no seu martírio um nome nobre - o de Justino, o filósofo, por que ainda é conhecido, e pelo qual será chamado para receber a sua coroa de mártir. PERSEGUIÇÃO EM LIÃO E VIENA Em Lião e Viena também a fé dos crentes foi duramen¬te provada, porque o inimigo das almas andava muito ati¬vo. Toda a espécie de tortura que o espírito humano podia imaginar era infligida aos cristãos daquelas cidades; mas o número aumentava sempre; e qualquer esforço que se fi¬zesse para exterminar a nova religião não fazia senão espa¬lhá-la cada vez mais, e com maior rapidez. Foi ali que Blandina, uma escrava de aparência fraca e franzina, de¬pois de sofrer com exemplar paciência as mais extraordi¬nárias torturas, durante as quais os próprios perseguidores se cansaram, ganhou a coroa do martírio, e morreu dando glórias a Deus. Ali também Santos, diácono da igreja, e Mauro, que havia pouco se convertera ao cristianismo, sofreram nobremente pela verdade, bem como Attalo, de Pérgamo; Potimo, bispo de Lyon, e muitos outros. E assim, da mesma maneira que o metal precioso passa pelo fogo do refinador que o torna puro, também a Igreja de Deus passou pelo fogo e aflição, e uma grande parte da escória que andava ligada a ela separou-se e consumiu-se, enquanto que as fagulhas que saem do lume, levadas para aqui e para ali pelo vento da perseguição, atearam no peito de muitos o desejo de compreenderem este extraordinário assunto e, por assim dizer, entenderem a natureza deste novo metal que de tal modo podia suportar a prova de fo¬go. UMA CARTA A JUSTINO Parece que até este tempo, a igreja tinha conservado aque¬la simplicidade de conduta e culto de que temos alguns be¬los exemplos em Atos dos Apóstolos, e em outros livros. Conta o mártir Justino as práticas que se faziam no seu tempo, e que não deixam de ser interessantes: "Encontra¬mo-nos no dia do Senhor", diz ele, "para adoração, nas ci¬dades e vilas; lemos nos livros dos profetas e das memórias dos apóstolos tanto quanto o tempo nos permite. Acabada a leitura, o presidente ou bispo, num discurso ou sermão, exorta os fiéis a seguirem aqueles excelentes exemplos; em seguida todos se levantam e oram juntos. Depois disto tra¬zem pão, vinho e água, e o presidente faz oração e dá gra¬ças conforme a sua habilidade, e toda a gente diz "Amém". Faz-se então a distribuição dos elementos abençoa-dos a todos os presentes, e aos ausentes manda-se pelos diáconos. "Aqueles que são ricos, e estão dispostos a contribuir dão o dinheiro que querem, cada qual conforme a sua von¬tade; e o que se junta é entregue ao presidente, que o dis¬tribui cuidadosamente para os órfãos e as viúvas, e para aqueles que por doença ou outro qualquer motivo estão ne¬cessitados, e também aos que se acham presos, e aos es¬trangeiros que residem conosco. Em suma, à todos aqueles que precisam de auxílio". Que bela simplicidade de vida e de culto! Na verdade é isso em parte um exemplo da continuação "na doutrina dos apóstolos e no partir do pão e na oração", que se reco¬menda no livro de Atos dos Apóstolos, e que constitui um distintivo da primitiva cristandade. 3 Quinta e sexta perseguições gerais (200 - 238) A CORAGEM DOS CRENTES A grande coragem que notamos em Policarpo, Ignácio e outros, não se encontrava somente neles. Nem só os cris¬tãos, de longa experiência, ou os homens fortes e valorosos por natureza, mostraram esta resistência no sofrimento; também os tímidos e fracos mostravam igual poder, que tanto se via nas mulheres como nos homens; nas crianças de tenra idade, como nos de idade madura. A força que os tornava vencedores não provinha deles, mas de Deus, por cujo poder eram guardados pela fé (1 Pe 1.5). E certo que houve alguns que procuravam resistir ao inimigo na sua própria força, e um deles foi um frígio cha¬mado Quinto, que andou por diversos pontos a persuadir os outros para que fossem ao encontro da perseguição, mas que no primeiro momento de verdadeiro perigo, voltou as costas ao Senhor e negou-o. Não queremos duvidar da rea¬lidade do seu zelo, porém agiu sem fé. Confiou na sua pró¬pria força, em lugar de a pedir a Deus, e não se lembrou que Paulo tinha dito: "O meu poder se aperfeiçoa na fra¬queza". Deixou cair o escudo da fé, pelo qual podia ter apagado os dardos inflamados do Maligno, e valeu-se do escudo da sua própria força; e um escudo assim, como era de esperar, foi atravessado pela primeira seta do inimigo. Não aconteceu o mesmo a Perpétua, a mártir de Cartago, cujo nome deve sempre figurar em um dos primeiros lu¬gares dos anais do martirológio, pois sofreu durante o tem¬po da perseguição de que vamos falar, e que se levantou no princípio do terceiro século, quando o imperador Severo ocupava o trono dos Césares. O IMPERADOR SEVERO O imperador Severo, homem de grande sagacidade e sabedoria, era africano por nascimento, mas foi odiado pela sua perfídia e crueldade. A perseguição que teve princípio no seu reinado não foi excedida em barbaridade por nenhum dos seus antecessores, nem tampouco o foi, de certo, por nenhum dos seus sucessores. Durante algum tempo, Severo pareceu estar disposto favoravelmente aos cristãos, e até se diz que atribuiu o res¬tabelecimento duma grave doença que teve às orações de um cristão chamado Proculo. Mas a sua benevolência não durou muito, e no ano 202 a perseguição rebentou na Áfri¬ca com desusada violência. Nem os esforços de Tertuliano que tão eloqüentemente apelou para a humanidade do po¬vo, nem os solenes avisos que ele dirigiu ao prefeito da África, serviram para fazer parar a torrente da fúria popular que nesse movimento se desencadeava sobre os cristãos. Foram, um após outro, arrastados à tortura e executados, até que as palavras do grande apologista fossem realiza¬das: "A vossa crueldade será a nossa glória. Milhares de pessoas de ambos os sexos, e de todas as classes, se hão de apressar a sofrer o martírio, hão de exaurir os vossos fogos, e cansar as vossas espadas. Cartago há de ser dizimada; as principais pessoas da cidade, talvez até mesmo os vossos amigos mais íntimos e os vossos parentes, hão de ser sacri¬ficados. A vossa contenda contra Deus será em vão!" HISTORIA DE PERPETUA O nobre exército dos mártires foi, na verdade, reforçado por muitas pessoas vindas da famosa capital da África Romana, e Vivia Perpétua, que se convertera pouco tempo antes, foi uma dessas: Era uma senhora casada, de 22 anos de idade, perten¬cente a uma boa família, e bem educada, e era mãe de uma criança, que a esse tempo era ainda de colo. O seu pai era pagão, e amava-a ternamente; e quando a agarraram e le¬varam para a prisão, ele procurou por todos os meios fazê-la voltar ao paganismo. Um dia em que ele tinha sido mais eloqüente do que costumava nas suas deligências, ela, mostrando-lhe um jarro que estava perto deles, disse: "Meu pai, veja este vaso; pode porventura dar-lhe um nome diferente daquele que tem?" "Não." - disse ele. "Pois bem", disse Perpétua, "também eu não posso usar outro nome que não seja o de cristã". A estas palavras, o pai voltou-se para ela colérico, esbofeteou-a, e então reti-rou-se: e durante alguns dias não lhe tornou a aparecer. Durante esta ausência, batizou-se ela, juntamente com mais quatro jovens, um dos quais era seu irmão, e então começou a perseguição a pesar mais sobre ela, pois foi lan¬çada com os seus companheiros na masmorra comum. Não havia luz, e quase se abafava por causa do calor, e aglome-ração de gente. ROGOS DO PAI DE PERPETUA Alguns dias depois, espalhou-se o boato de que os prisio¬neiros iam ser interrogados, e o pai de Perpétua, minado de desgosto, veio da cidade, com o maior desejo de salvá-la. A maneira pela qual se aproximou dela era, desta vez, bem diferente, e as ameaças e violências deram lugar a sú¬plicas e rogos. Pediu-lhe que tivesse dó dos seus cabelos brancos, e pensasse na honra do seu nome; que se lembras¬se de toda a sua bondade para com ela, e da maneira como ele a tinha amado acima de todos os filhos. Instou com ela para que se apiedasse de sua mãe e irmãos, do seu querido filho, que não podia viver sem ela. "Não nos aniquiles a to¬dos!" - exclamou ele. Em seguida deitou-se aos seus pés, chorando amargamente, e beijando-lhe as mãos com ter¬nura; e, agarrando-se-lhe à roupa como um suplicante, disse-lhe que dali em diante, em vez de lhe chamar filha, lhe chamaria "senhora", porque ela era agora senhora do destino de todos eles. Mas Perpétua, poderosamente sus¬tentada por Deus. suportou a agonia daquele momento com inabalável coragem, apenas dizendo: "Neste momen¬to de provação, há de acontecer o que for da vontade de Deus. Fique sabendo, meu pai, que nós não podemos dis¬por de nós mesmos, mas que esse poder pertence a Deus". O DIA DO JULGAMENTO No dia do julgamento, foi conduzida ao tribunal, com os outros prisioneiros, e quando chegou a sua vez de ser in¬terrogada, o pobre velho pai apareceu com a criança, e apresentando-lhe diante dos olhos, pediu-lhe mais uma vez que tivesse compaixão deles. Valendo-se da situação, o procurador Hilariano sus¬pendeu o seu severo interrogatório, e disse-lhe com os mo¬dos mais brandos: "Poupa os cabelos brancos de teu pai! poupa o teu filhinho! oferece um sacrifício pela prosperida¬de do imperador!" Mas ela respondeu: "Não oferecerei sa¬crifício algum". Então o procurador perguntou-lhe: "És cristã?" A estas palavras o pai rompeu em altos gritos, tanto que o procurador ordenou que ele fosse lançado ao chão, e açoitado; tudo isto Perpétua presenciou com cora¬gem, reprimindo a sua dor; em seguida leram-lhe a senten¬ça de morte e conduziram-na de novo à prisão com os seus companheiros. Enquanto se aproximava o dia dos jogos, mais uma vez o velho a visitou, e com rogos ainda mais veementes pediu-lhe que tivesse dó da sua aflição, e consentisse em oferecer um sacrifício pela prosperidade do imperador; mas apesar da mágoa de Perpétua ser muito grande a sua firmeza não se abalou, e não negou a fé. Foram estas, na verdade, as mais duras provas pelas quais ela teve de passar, mas aca¬baram, por fim, e o dia do seu martírio bem depressa che¬gou. O DIA DA EXECUÇÃO Nesse dia conduziram-na para fora com o irmão, e ou¬tra mulher chamada Felicidade, e as duas foram atadas em redes, e lançadas a uma vaca brava. Os ferimentos de Perpétua não foram mortais, e a populaça farta, mas não saciada pela vista do sangue, disse ao algoz que aplicasse o golpe da morte. Como que despertando de um sonho agradável, Perpé¬tua chegou a túnica mais a si, levantou o cabelo que lhe caíra pelas costas abaixo, e depois de ter dirigido com voz fraca algumas palavras de animação a seu irmão, guiou ela mesma a espada do gladiador para o coração, e assim expi-rou. Corajosa Perpétua! O coração bate-nos apressado ao ler a tua maravilhosa história, mas ainda havemos, pela graça de Deus, de ver-te coroada e feliz na presença do teu Senhor! UMA CARTA DE IRINEU No mesmo ano (202 d.C.) morreu Irineu, bispo de Lyon, um amigo sincero das almas, e zeloso defensor da verdade. Resistiu a Vitor, que era então bispo de Roma, homem de muita arrogância e pouca piedade; e escreveu-lhe uma carta sinódica em nome das igrejas galicanas. O seguinte extrato de outra carta que Irineu escreveu a um tal Horino, cismático de Roma, será sem dúvida lida com interesse: "Vi-te", escreve ele, "na Ásia Menor, quando ainda eu era rapaz, com Policarpo, no meio do grande esplendor da corte, procurando por todos os meios ganhar a sua amiza¬de. Lembro-me muito melhor dos acontecimentos desse tempo, do que daqueles dos tempos mais recentes. Os es¬tudos da nossa mocidade, desenvolvendo-se a par da nossa inteligência, unem-se de tal modo que eu posso também indicar o próprio sítio onde o bendito Policarpo costumava sentar-se a discursar; e igualmente me lembro das suas en¬tradas, passeios, maneira de viver, a sua forma, as suas conversas com o povo, as suas afáveis entrevistas com João, segundo ele costumava contar-nos, e a sua familiaridade com aqueles que tinham visto o Senhor Jesus. "Também me recordo da maneira como costumava contar os discursos desses homens, e as coisas que eles ti¬nham ouvido dizer sobre o Senhor. Tudo que dizia respeito aos seus milagres e doutrinas era repetido por Policarpo em conformidade com as Sagradas Escrituras, como o ti¬nha ouvido das testemunhas oculares desses fatos". Irineu teve muitas contendas com os falsos ensinadores do seu tempo cujo número ia, infelizmente, aumentando com grande rapidez; e o seu zelo em pouco tempo fez cair sobre ele o ressentimento do imperador. Foi conduzido ao cume de um monte, juntamente com mais alguns cristãos, e tendo se recusado a oferecer sacrifícios, foi degolado. OS MÁRTIRES DA ALEXANDRIA Assim morreu em Alexandria, Leônidas, homem de sa¬bedoria, e alta posição, pai de Orígenes, de quem falare¬mos mais tarde. Também dois cristãos chamados Sereno, com Heraclides, Heron, e Plutarco, sendo o último um discípulo de Orígenes. Podíamos aumentar a lista com muito mais nomes, mas falta-nos espaço; e sentimos uma bendita satisfação pela idéia de que virá o dia, em que não só havemos de conhecer os seus nomes, mas também os ve¬remos coroados, e sem dúvida teremos doce comunhão com eles. A SEXTA PERSEGUIÇÃO GERAL A sexta perseguição geral começou quando o traciano Máximo subiu ao trono no ano 235 d.C. e durou três anos. Esta perseguição teve por causa imediata uma circunstân¬cia muito extraordinária. Máximo tinha um ódio terrível ao seu antecessor Alexandre, e para mostrar o seu ódio, mudou quanto possível a política do reinado de Alexandre. Aquele governador tão humano tinha tratado os cristãos com bondade; foi isto o bastante para que esse malvado traciano os tratasse com severidade. O seu primeiro edito apenas ordenava que fossem mortos os homens principais da igreja, mas a sua natureza cruel excitou-se com este ato sanguinário, e bem depressa a este edito se seguiu outro com caráter mais cruel. Durante o seu reinado, os cristãos foram conduzidos ao lugar de suplício sem serem julgados, e muitas vezes os seus corpos eram atirados nas covas, uns para cima dos outros, como cães. Os magistrados não os podiam proteger contra a selvageria da plebe, nem contra a tirania dos opressores, de modo que os seus bens torna¬ram-se a presa da população e as suas vidas estavam em perigo a todo o momento. Mas no meio de tudo isto, ainda se encontravam por toda a parte homens e mulheres fiéis à causa do cristianismo, e quanto mais editos o imperador mandava publicar, com mais resplendor brilhavam as lu¬zes que ele em vão procurava apagar. PERSEGUIDORES E PERSEGUIDOS Duzentos anos se tinham passado depois da morte de Cristo; duzentos anos de ódio e sofrimento contra a sua amada Igreja, mas ainda assim o número de crentes ia sempre aumentando. Muitas e muitas vezes o poder do In¬ferno trabalhou contra ela, mas sempre em vão. "Esta bigorna tinha gastado muitos martelos", e quando o selva¬gem traciano subiu ao trono imperial, viu que tinha a ven¬cer as mesmas dificuldades, e a subjugar o mesmo poder misterioso que iludira o mais astucioso e infatigável dos seus antecessores. Na verdade, a Igreja prosperou no meio da perseguição, e a semente do Evangelho foi espalhada por uma área cada vez maior, e regada com o sangue dos mártires; o fruto foi cento por um, apesar de os esforços que se empregaram para aniquilar o cristianismo serem terríveis e variados; atiraram-se contra uma comunidade pacífica, mas nem os editos do imperador, nem a popula¬ção irada, nem os agoureiros descontentes, nem os filósofos escarnecedores, conseguiram deter o seu desenvolvimento, e ainda menos destruí-la. Fundada sobre a Rocha, a Igreja ali ficou - como obra de Deus e a maravilha dos homens; com aquela eterna pro¬messa que é a sua forte confiança: "As portas do Inferno não prevalecerão contra ela..." 4 Sétima e oitava perseguições gerais (238-274) Ao contemplarmos a decadência do império romano, há muita coisa que nos faz lembrar a história contemporâ¬nea da Igreja de Deus. Roma tinha já passado o auge da sua glória, e infelizmente também dava-se o mesmo com a igreja quanto ao seu testemunho público aqui no mundo. O REINADO DE ALEXANDRE SEVERO O reinado pacífico de Alexandre Severo fora motivo de maior mal para a causa cristã do que todas as perseguições juntas. No seu tempo, a igreja, por falta de zelo, começou a sentir-se cansada de estar em santa separação do mundo, e os bispos cristãos, ensoberbecidos pelo seu crescente poder e importância, aceitavam colocações na corte, e começa¬ram a acumular riquezas colossais. Já haviam aparecido em diferentes partes do império alguns templos para o mais ostentoso desenvolvimento da nova religião, e as pa¬lavras do Espírito Santo "o Altíssimo não habita em templos feitos pela mão do homem" pareciam estar em gran¬de perigo de serem esquecidas. A bela simplicidade da igreja primitiva estava rapidamente desaparecendo, sendo prejudicialmente substituída pela mão do homem que em tudo se intromete. Paulo, como hábil mestre de obras, pu¬sera o fundamento, mas outros construíram sobre ele edifí¬cios que não prestavam para nada; e o ouro, a prata e as pedras misturaram-se com a madeira, o feno e a palha de uma organização sem vida. (Veja-se 1 Co 3.) Foi então que os cristãos começaram a concordar com as filosofias da Grécia e de Roma, e encontraram estímulos para a sua fé declinante no misticismo ousado do Egito e da Arábia: e, portanto, ninguém se deve admirar de que, quando uma nova perseguição rebentou, muitos dos cren-tes verdadeiros desanimaram e manifestaram receios de que Deus os estava tratando conforme os seus pecados. Impelidos por estes receios, e esquecendo a suficiência que se pode encontrar em Cristo, alguns deles negaram a fé ou se tornaram culpados de dissimulação, para assim evi¬tar maior perseguição. Por isso tornaram-se notados pelos irmãos mais fiéis, e quando voltaram, como muitos fize¬ram, para serem readmitidos à comunhão da igreja, levan¬tou-se um grande debate e houve muitas opiniões diferen¬tes. Alguns queriam readmitir os irmãos culpados, depois da simples confissão do seu erro; outros queriam um proce¬dimento mais severo, e instavam para que a readmissão não lhe fosse concedida tão depressa; enquanto outros (e estes não poucos) declaravam que o ato não tinha descul¬pas, e recusaram receber os culpados, fosse de que maneira fosse. A esta última opinião deu-se o nome de heresia de Novaciano por ser ele o seu autor; quando ele e os seus amigos fizeram prevalecer as suas opiniões seguiram-se os mais tristes resultados, por isso que muitos dos verdadei¬ros filhos de Deus, impossibilitados de desfrutar mais co¬munhão com seus irmãos, foram invadidos por uma triste¬za terrível, morrendo de remorsos. REINADO DE DECIO Décio ocupava o trono nesta ocasião, e a maneira implacável como perseguiu os cristãos deu-lhe um lugar pou¬co invejável ao lado do grande exemplar da crueldade im¬perial - Nero. Décio observava com inveja o poder crescen¬te dos cristãos, e determinou reprimi-lo. Via as igrejas cheias de prosélitos enquanto os templos pagãos estavam desertos; e isto, na sua opinião, era um insulto à religião nacional, que não podia passar despercebido. Por conse¬qüência, mandou publicar editos por toda a parte, e atiçou mais uma vez o fogo quase apagado da perseguição. Fabiano, bispo de Roma, foi o primeiro alvo do seu res¬sentimento, e foi tal a força da perseguição, que depois da sua morte ninguém teve coragem de ir ocupar o seu lugar. Orígenes no Oriente, e Cipriano no Ocidente muito fize¬ram pelo seu exemplo e ensino para dar vigor a mãos can¬sadas, e fortalecer os joelhos trêmulos, mas apenas tiveram superintendência de distritos muitos limitados, e outros bispos e pastores não foram tão fiéis. OS EDITOS DO IMPERADOR DÉCIO O imperador mandou publicar editos após editos indi¬cando aos cristãos certos dias para comparecerem perante os magistrados, e aqueles que recusavam renunciar à sua religião eram lançados em prisões e sujeitos às mais horro¬rosas torturas para os obrigar a abandonar a nova fé. Al¬guns cediam, e outros, entre os quais o infatigável Oríge¬nes, foram fiéis até o fim. Muitos desterravam-se volunta¬riamente, e no seu desterro continuavam a fazer as suas reuniões em bosques e em cavernas, sentindo-se muito mais seguros e felizes na companhia dos animais ferozes do que na sociedade de homens tão brutais como os seus per¬seguidores. Ainda assim nem sempre conseguiram desta maneira estar em segurança. Sabemos de sete soldados ro¬manos que morreram à fome numa caverna em que se ti¬nham refugiado; pois o imperador ordenara que a entrada fosse fechada. Mas, nem todos eram tão fracos, e a intrepidez de al¬guns deles durante o interrogatório foi um contraste notá¬vel com a timidez dos que já falamos. "Admiro-me", disse um deles a quem ordenavam que oferecesse sacrifício a Vênus, "que me mandeis prestar culto a uma mulher infame cujos deboches até os vossos próprios historiadores recor¬dam, e cuja vida foi toda de atos que as vossas próprias leis haviam de punir". A censura era justa, mas a verdade dita por aquela forma poucas vezes se suporta, e o orador foi condenado, pela sua ousadia, ao suplício da roda e a ser decapitado. Também uma mulher que um homem obrigou a oferecer incenso, agarrando-lhe a mão para este fim, ex¬clamou: "Não fui eu que fiz isto, mas sim o senhor", e por isto foi condenada ao exílio. UMA CARTA A CIPRIANO Um outro, que estava prisioneiro em Roma, escreveu a Cipriano: "Que mais gloriosa e bendita sorte pode ter o homem, do que no meio das torturas e com a perspectiva da própria morte, apresentar-se, pela graça divina, a Deus, o Senhor, e confessar Cristo como Filho de Deus, tendo o corpo lacerado, porém o espírito sempre livre por que se torna com-panheiro de Cristo no sofrimento? Se não temos derrama¬do o nosso sangue, estamos prontos para fazê-lo. Portanto, querido Cipriano, ora ao Senhor para que diariamente nos confirme e fortaleça cada vez mais com a força do seu po¬der; e para que Ele, como o melhor dos comandantes, con¬duza os seus soldados, a quem tem disciplinado e experi¬mentado no perigo, ao campo de batalha que está diante de nós, armados com aquelas armas divinas que nunca po¬dem ser vencidas". Na verdade, o Senhor nunca se tinha esquecido do seu povo querido, e o tempo de aflição dos seus escolhidos fora fixado por Ele. Talvez Ele visse a fraqueza deles e, por isso, encurtasse o tempo da sua provação. Assim parecia mes¬mo, porque depois de um curto reinado de dois anos e seis meses, foi Décio morto numa batalha com os godos; e as¬sim terminou a sétima perseguição geral do império. OITAVA PERSEGUIÇÃO GERAL Galo, que sucedeu a Décio, apenas reinou dois anos, e, depois da sua morte, subiu ao trono Valeriano, que começou uma nova perseguição. A princípio, estava bem disposto a favor dos cristãos, e diz-se que examinou a in¬fluência que o cristianismo exercia na moral pública, mas a sua paixão pela magia oriental dispôs o seu espírito para o ensino insidioso de um mágico egípcio, chamado Macriono, o qual se opunha ativa e amargamente à verdade; e pode-se atribuir à sua especial influência a oitava perse¬guição geral do império. O MÁRTIR CIPRIANO Logo que ocorreram os primeiros boatos da persegui¬ção, Cipriano tornou-se notável. Algumas referências à sua prévia história não deixam de ter lugar aqui. Nasceu no ano 200, descendia de uma família nobre, e recebeu uma educação adequada à sua posição. Mais tarde ensinou re-tórica publicamente e com grande sucesso em Cartago, onde vivia de uma maneira principesca. Dizem que se ves¬tia com magnificência, tinha uma comitiva suntuosa, e le¬vava uma multidão de pessoas às sua ordens, quando ia para fora. Sendo convertido do paganismo aos quarenta e cinco anos de idade, vendeu imediatamente os seus bens e deu a maior parte do produto da venda aos pobres. Progre¬dia admiravelmente no estudo da verdade, e depois de três anos; durante os quais se aplicou muito de perto à leitura das Escrituras Sagradas, fizeram-no bispo de Cartago. No reinado de Décio, foi publicada uma ordem de pri¬são contra ele, mas Cipriano retirou-se para um lugar se¬guro até passar a tempestade, e ali empregou as suas horas de descanso a escrever cartas consoladoras aos cristãos que sofriam. Não foi, contudo, o medo que o fez dar este passo, como o prova a evidência da sua conduta numa ocasião posterior. Acabara de voltar para Cartago no princípio do reinado de Valeriano, quando rebentou a peste naquela ci¬dade, e nessa ocasião pôde ele prestar valioso auxílio aos que sofriam. Exortava os cristãos a que esquecessem as injúrias que tinham sofrido, e manifestassem as graças do Evangelho, tratando, não só dos seus próprios irmãos, como também dos seus inimigos que se achassem atacados da peste. Responderam à exortação com a melhor boa vontade, e foram tratar das doentes alegremente. Quando no reinado de Valeriano a perseguição reben¬tou, Cipriano não tornou a fugir. Foi, por isso, preso por or¬dem do procônsul, e desterrado; mas tornou depois a ser chamado por mandado de um novo procônsul. Contudo, este chamamento foi simplesmente para que fosse julgado mais uma vez; e surdo aos rogos sinceros dos seus irmãos, que instavam com ele para que se escondesse até a perse¬guição ter passado, consentiu que o prendessem de novo. No dia seguinte à sua prisão, teve lugar o julgamento, e o primeiro senador de Cartago foi conduzido, por uma gran¬de guarda, ao palácio do procônsul. Foi uma cena digna de se ver, e todos os habitantes da cidade saíram para a rua para presenciar. O interrogatório foi curto, e de ambos os lados se trocaram poucas mas decisivas palavras. "És tu Tácio Cipriano, o bispo de tantos homens ímpios?" "Sou eu mesmo". "Pois bem, o mais sagrado dos imperadores ordena-te que ofereças sacrifício". "Não ofe¬reço sacrifício algum". "Pensa bem", disse o procônsul. "Executai as vossas ordens; o caso não admite considera¬ções", respondeu Cipriano. O procônsul então proferiu a sentença, concluindo com estas palavras: "Deves expiar o teu crime com o teu sangue". Cipriano exclamou: "Louva¬do seja Deus!" E nesta alegre disposição de espírito foi pouco depois conduzido a um campo vizinho, e ali decapi¬tado. CIRILO, UM JOVEM MÁRTIR Até as próprias crianças não foram isentas dessa perse¬guição, e muitas, pela graça divina, testemunharam uma boa confissão. Cirilo de Alexandria, um rapaz de tenros anos, foi um destes; e a realidade da sua fé era tal, que nem ameaças nem bofetadas foram capazes de o abalar, nem mesmo a perspectiva de uma morte lenta e dolorosa. Foi insultado por crianças de sua idade, e até o pai o expulsou de casa por ele não querer renunciar à sua fé e reconhecer o imperador como Deus. A sua conduta na presença do ma¬gistrado foi igualmente interessante e conscienciosa: "Rapaz", disse-lhe o bondoso pagão, "estou pronto a perdoar-te, e a consentir que teu pai te leve outra vez para casa, e podes mais tarde herdar os seus bens; para isso basta que tenhas juízo e olhes pelos teus próprios interesses". Mas ele recusou com firmeza: "Estou pronto a sofrer", disse ele, "e Deus há de levar-me para o Céu. Não me importo de ter sido expulso de casa: hei de ter um lar melhor. Não tenho medo de morrer; a morte vai apenas conduzir-me a uma vida melhor". Como o governador não pudesse persuadi-lo a que se re¬tratasse, disse aos oficiais que o levassem para o poste e lhe mostrassem a palha e o feixe de lenha, esperando que isso o intimidasse, mas o rapaz resistiu à prova, e não manifes¬tou sintoma algum de medo. O bom Pastor conservou-se muito próximo da sua ovelha atribulada, e não consentiu que o temor entrasse no seu coração; e o povo só pôde cho¬rar e maravilhar-se. Quando voltou à presença do governa¬dor e este lhe perguntou: "Estás agora resolvido a mudar de idéia?" - ele respondeu com intrepidez: "O vosso fogo e a vossa espada não me podem molestar: vou para um lar mais feliz; queimai-me depressa, para que eu chegue lá mais cedo"; e vendo lágrimas nos olhos de muitos especta¬dores, disse: "Deveis estar contentes, e decerto estaríeis, se conhecesseis a cidade para onde vou". Depois disto foi no¬vamente conduzido ao poste e ali amarrado; e puseram os cavacos e a palha em volta dele, e acenderam-nos. Mas os sofrimentos da criança bem depressa cessaram, e antes de o fumo da fogueira se dissipar completamente, já ele esta¬va além do alcance do martírio e daquela terrível prova, e tinha entrado no "lar melhor" de que ele falara. MARTÍRIO DE LOURENÇO Um diácono da igreja em Roma, chamado Lourenço, foi outro mártir desta perseguição. Sendo chamado para dar contas ao imperador dos tesouros da igreja, reuniu al¬guns dos pobres mais velhos e desamparados, e apresen¬tou-os ao magistrado, dizendo: "Eis aqui os tesouros da igreja!" Zangado e contrariado com estas palavras, o ma¬gistrado entregou-o aos algozes, que lhe bateram com varões de ferro, deslocando-lhe os membros, e por fim esten¬deram-no numas grelhas e o assaram lentamente. MORTE DO IMPERADOR VALERIANO Valeriano, contudo, foi feito prisioneiro por Sapor, rei dos persas, depois de ter administrado os negócios do im¬pério por espaço de quatro anos, e isto pôs fim a esta perseguição. A igreja teve sossego durante perto de quinze anos, findos os quais se tornou a manifestar o incansável ódio dos homens pelo Evangelho, e uma nova perseguição geral rebentou. NO REINADO DE AURELIANO A perseguição que começou no reinado de Aureliano, durou apenas alguns meses; porque os atos sanguinários que ele praticara não tinham ainda alcançado os limites do seu domínio quando a mão do assassino o prostrou. A tem¬pestade parecia realmente aproximar-se com rapidez e o horizonte tornou-se negro e carregado por algum tempo, mas depois de alguns trovões que anunciavam um tempo¬ral, as nuvens espalharam-se sem descarregarem, e os cris¬tãos puderam outra vez respirar livremente. Mas se há pouco que dizer a respeito de perseguição, as memórias daquele tempo referentes à Igreja estão cheias de tristes interesses. Foi durante o reinado de Aureliano que os cristãos pediram o arbítrio do poder civil para os ne¬gócios da igreja; e isto, de mais a mais, num caso de disci-plina importante. No tempo dos apóstolos tinham eles pe¬dido o auxilio de magistrados para regularem algumas questões particulares, e por esse motivo foram asperamen¬te censurados por Paulo (1 Co 6), mas que teria este dito agora, vendo que se apelava para o poder civil para decidir uma questão que afetava de uma maneira tão solene as verdades fundamentais da religião cristã? PAULO DE SAMOSATA Paulo de Samosata, um pagão ímpio e vão, o qual por meios incompreensíveis alcançou o título de Bispo de Antioquia, espalhou uma heresia abominável a respeito da pessoa do Senhor Jesus. O seu ensinamento excitou, nessa ocasião, a atenção dos cristãos em toda a parte oriental do império e foi convocado um conselho para averiguar o caso. Reuniram-se em Antioquia pastores e bispos que vi¬nham de toda a parte, e depois de investigarem com o má¬ximo cuidado, decidiram unanimemente expulsar dentre eles aquele homem ímpio. Teria sido uma felicidade para a igreja se o caso terminasse aqui, mas não sucedeu assim. Esse homem recusou-se a ceder à autoridade da igreja, e o conselho apelou para o imperador, que enviou a questão para os bispos de Itália e Roma; e como eles confirmassem a decisão dos seus irmãos, o altivo bispo nada mais teve de fazer senão retirar-se em silêncio, sob o peso de uma dupla censura. MUDANÇA DA POLÍTICA DE AURELIANO Foi só depois deste acontecimento que Aureliano mu¬dou a sua atitude para com os cristãos; e nunca se pôde afirmar positivamente qual foi a causa da mudança dessa política. Eusébio atribui isso, de uma maneira vaga, à in¬fluência de certos conselheiros, mas não explica quem eram. nem tampouco como foi que conseguiram ganhar o apoio do imperador. "Mas", disse ele, "quando Aureliano estava já quase, por assim dizer, no ato de assinar o decre¬to, a vingança divina alcançou-o... provando, assim, a to¬dos, que nenhum privilégio pode ser concedido aos gover¬nadores do mundo contra a Igreja de Cristo, a não ser pela permissão da poderosa mão de Deus". 5 Nono e décima perseguições gerais (274-306) DECADÊNCIA ESPIRITUAL DOS CRISTÃOS Depois dum descanso de uns vinte e oito anos, tornou a mesquinha mão do homem a estender-se para continuar a perseguição, e o imperador fez o último e desesperado es¬forço para exterminar a religião tão odiada. Historicamen¬te, foi este o último e decisivo conflito entre o paganismo e o cristianismo. Durou dez anos, e foi sem dúvida a mais desoladora de todas as perseguições. A segurança tranqüi¬la, que a Igreja desfrutara desde a morte de Aureliano ti¬nha produzido uma tal inação nos cristãos, que a sua con¬dição levantou um certo sentimento de vergonha no cora¬ção de muitos, misturado com o receio de que o desagrado do Senhor estivesse pendente sobre as suas cabeças. Em conseqüência da sua infidelidade, a Igreja tinha diminuído muito em poder espiritual, mas tinha aumentado em so¬berba e ambição mundana; e a simplicidade de seu culto quase se ofuscou por ritos mais judaicos que cristãos. E isto ainda não era tudo. Muitos empregavam os seus dons espirituais em ostentação em vez de os empregarem em edificação; e aqueles que tinham o privilégio de poder alimentar o rebanho de Deus, descuravam o seu encargo sagrado e ocupavam-se na acumulação de riquezas. Os bis-pos, cujo verdadeiro dever era servir ao povo e trabalhar pessoalmente entre os pobres e os doentes, tornavam-se numa grande ordem sacerdotal, e procediam como "tendo domínio sobre a herança de Deus". Estes tinham emprega¬dos às suas ordens e já não seguiam a hospitalidade de que Paulo falara como sendo uma qualidade indispensável aos bispos, mas recebiam um salário, tornando-se dependen¬tes dos ganhos alheios. Antes de ter passado um século, ouviu-se um pagão di¬zer: "Façam-me bispo de Roma, que eu logo me tornarei cristão". Na verdade, a distinção entre o clero e os leigos proce¬dia deste sistema de tirania espiritual; e daqui provinham por sua vez, aqueles medonhos abusos da Idade Média, que mais tarde foram condenados em parte (se bem que por razões políticas) pelo arrogante e ousado Hildebrando, quando subiu à cadeira papal. Além disso, a paz inteira das assembléias era constan¬temente perturbada pelas discussões. Havia contínuas dis¬putas entre os bispos e os presbíteros, por causa das altivas pretensões dos primeiros, que exigiam superioridade na igreja, superioridade esta que os últimos não queriam de modo algum conceder. Nos primeiros tempos do cristianis¬mo aqueles dois títulos haviam sido considerados iguais, e só perto do fim do segundo século é que o costume conse¬guiu colocar um acima do outro. A controvérsia foi longa e amarga, e enquanto os pastores assim lutavam uns com os outros, as ovelhas morriam de fome, e os lobos daninhos estavam-se introduzindo no meio delas, não poupando o rebanho. PERSEGUIÇÃO NO REINADO DE DIOCLECIANO No meio deste triste estado de coisas, começou a perse¬guição no reinado de Diocleciano. Este tirano, soberbo e selvagem, ocupava o trono havia já dezenove anos, e du¬rante esse tempo tinha associado ao seu governo três outros opressores como ele: Maximiliano, Galério, e Constantino Cloro, pai de Constantino, o Grande. Galério, que odiava os cristãos, era genro do imperador, e exercia uma influência fatal sobre ele. Persuadiu-o de que o cristianismo se opunha aos melhores interesses do povo, e que o meio de fazer reviver as antigas glórias do im¬pério era arrancar pela raiz aquela odiosa religião e des¬truí-la completamente. Para melhor atingir o seu fim, procurou o auxílio dos sacerdotes pagãos e dos mestres de filosofia que, pelas suas palavras e influências, bem depressa levaram o imperador a partilhar das idéias deles. Publicaram-se então quatro editos ao todo; o primeiro, ordenando a destruição de todas as igrejas e dos escritos sagrados - edito este sem dúvida instigado pelos filósofos; o ! segundo, determinando que todos os que pertencessem às ordens, clericais fossem presos; o terceiro, declarando que nenhum seria solto a não ser que consentisse em oferecer sacrifício; e o quarto mandando que todos os cristãos em qualquer condição em toda parte do império, oferecessem sacrifício e voltassem a adorar os deuses, sob pena de mor¬te em caso de recusa. Logo que o primeiro edito apareceu em Nicomédia (a nova capital do império) foi rasgado por um cristão indig¬nado. No lugar dele deixou estas palavras de desprezo: "São estas as vitórias dos imperadores sobre os godos". Este ato de zelo custou-lhe bastante caro, pois sofreu as torturas que lhe infligiram: Foi queimado vivo num fogo lento. Tendo rebentado uma conflagração no palácio do im¬perador, acusaram os cristãos do ato, e por isso aumentou a violência da perseguição. Em menos de quatorze dias, o palácio estava outra vez em chamas, e a cólera de Diocleciano que já então estava muito inquieto, tornou-se terrí¬vel. Os oficiais da casa imperial, e todos quantos moravam no palácio, foram expostos às mais cruéis torturas. Diz-se que por ordem, e em presença de Diocleciano, Prisca e Va¬léria, (mulher e filha do imperador) foram obrigadas a ofe¬recer sacrifícios; os poderosos eunucos Doroteo, Jorgino e Andrias sofreram a morte; Antino, bispo de Nicomédia, foi decapitado. Muitos foram executados, outros queimados, outros amarrados e com pedras atadas ao pescoço levados em botes para o meio do lago, e ali lançados à água. Ao oriente e ocidente de Nicomédia as perseguições tor¬naram-se violentas e furiosas, e a única província romana que escapou a esta medonha tempestade foi a Gália. Era ali que residia Constantino, o único governador que prote¬gia os cristãos; os outros eram implacáveis e não tinham remorsos. Mas Diocleciano sentiu-se por fim cansado de tão medonho trabalho, e no ano seguinte entregou as ré¬deas do governo. O seu colega Maximiano seguiu-lhe o exemplo imediatamente, e Galério reinou como único se¬nhor do Oriente até que seu sobrinho, um monstro igual a ele, obteve o governo da Síria e do Egito sob o título de Maximiano II. Ser-nos-á impossível falar de todos os mártires cujos nomes estão ligados a esta perseguição, pois devem ter sido contados por milhares durante estes tristes dez anos. No Egito, os cristãos sofreram o martírio aos grupos, tendo havido dia de sessenta a oitenta mortes. Romano, o diácono de Antioquia, quando foi ameaçado com a tortura, exclamou: "Oh! imperador, recebo gostosamente a tua sentença; não me recuso a ser torturado a favor dos meus irmãos, ainda que seja pelos meios mais cruéis que possas inventar". Quando o executor hesitava em continuar o seu terrível trabalho, em conseqüência de a vítima pertencer à nobre¬za, Romano disse: "Não é o sangue dos meus antepassados que faz com que eu seja nobre, mas sim a minha profissão cristã". Depois de ter recebido muitas feridas no rosto, ex-clamou: "Agradeço-te capitão, por me teres aberto tantas bocas pelas quais eu possa pregar o meu Senhor e Salvador Jesus Cristo". MAIS MÁRTIRES Outro a quem perguntaram durante o seu interrogató¬rio: "Por que é que conservas as Escrituras que são proibi¬das pelo imperador?" Respondeu: "Porque sou cristão; nas Escrituras está a vida eterna: e quem as despreza perde essa vida eterna". Uma menina de treze anos, filha de um fidalgo de Emé¬rita, dava louvores a Deus no meio das torturas, dizendo: "Oh! Senhor eu não te esquecerei! Que boa coisa é para aqueles que se lembram dos teus triunfos, oh! Cristo, e que atingem estas altas dignidades!" Outra também, uma senhora rica chamada Julieta, enquanto as chamas a en¬volviam, exclamava: "Oh! minhas irmãs, abandonai a vida que gastais nas trevas, e amai a Cristo - o meu Deus, meu Redentor, meu Consolador, e que é a verdadeira Luz do mundo. Que o Espírito de Deus vos faça convencer de que há um outro mundo no qual os adoradores dos ídolos e demônios hão de ser eternamente atormentados, e os ser¬vos do Deus verdadeiro serão eternamente coroados". Foi este o seu fiel testemunho. MORTE DOS PERSEGUIDORES Façamos a comparação entre essas cenas triunfantes e o fim miserável dos grandes perseguidores do cristianismo. Nero, Diocleciano, e Maximiano suicidaram-se. Domiciniano, Cômodo, Maximínio e Aureliano foram assassina¬dos. Adriano morreu em agonia gritando: "Quão desgraça¬do é procurar a morte e não a encontrar! "Décio, cuja reti¬rada foi impedida durante uma emboscada, morreu mise-ravelmente, e o seu corpo foi presa de abutres e animais fe¬rozes. Valeriano depois de ser preso por Sapor rei da Pér¬sia, foi empregado como um banco onde esse rei punha os pés quando montava o seu cavalo; e depois de sofrer du¬rante sete anos este e outros insultos, foram-lhe arrancados os olhos e esfolaram-no vivo. Maximínio teve uma morte lenta e horrorosa; e, finalmente, Galério, o príncipe dos perseguidores, foi atacado de uma doença terrível que o condenou a um contínuo martírio. Foram consultados os médicos, em vão, e assim como Antíoco Epifânio e Herodes, que foram tão cruéis quanto ele, foi o seu corpo comi¬do de bichos. Mas o período da história que está indicado na carta es¬crita ao anjo da igreja em Esmirna (Ap 2.8-11) tinha chegado ao seu fim. Aquela mística intimação do cabeça da igreja: "Vós tereis tribulações por dez dias", tinha sido cumprida; e as dez perseguições do império romano pagão tinham passado à história. A décima durou dez anos, mas mesmo essa acabou, e então o período que corresponde ao tempo indicado na carta dirigida ao anjo da igreja em Pérgamo (Ap 2.12-17), quando o leão se tornou em serpente e os adversários de fora deram lugar aos sedutores de dentro, começou: Constantino, o Grande, de quem fala a história, tinha subido ao trono. 6 Quarto século da Era cristã (306-375) CONSTANTINO O GRANDE A subida ao trono de Constantino, o Grande, marca uma nova era na história da igreja e por isso é conveniente examinar rapidamente a sua carreira pública. Nasceu na Grã-Bretanha, e dize-se que a sua mãe era uma princesa britânica. Depois da morte de seu pai que foi muito esti¬mado pela sua justiça e moderação, as legiões romanas es¬tacionadas em York saudaram-no como César e vestiram-no com a púrpura imperial. Apesar de Galeriano se ofender com esta aclamação, ele não estava preparado para se ar¬riscar numa guerra civil, opondo-se a ela; e portanto ratifi¬cou o título que o exército dera a seu general, e concedeu-lhe o quarto lugar entre os governadores do Império. Du¬rante os seis anos que se seguiram administrou Constanti¬no a Prefeitura da Gália com uma perícia notável, e ao fim desse tempo tomou posse de todo o império romano, visto que Maximínio e Galério, no intervalo, tinham morrido. Apenas restava agora um competidor ao trono, Maxêncio, um forte defensor do paganismo, e logo que Constantino obteve conhecimento exato dos seus recursos, marchou contra ele com um grande exército, e venceu-o completa¬mente. A questão de Constantino ser ou não realmente cristão, sempre tem sido ponto de dúvida entre os escritores sagra¬dos, e têm-se apresentado muitas e diferentes razões como prova de que adotou a religião cristã. Mas se efetivamente se converteu, podemos afirmar positivamente que não foi antes de marchar contra Maxêncio, tendo, segundo se diz, presenciado durante essa marcha, um fenômeno extraordi¬nário no firmamento, e sido favorecido com uma visão no¬tável. Até esse tempo estava ainda indeciso entre o paga¬nismo e o cristianismo. TEMPOS NOVOS PARA A IGREJA Tinha agora chegado um tempo muito extraordinário para o povo de Deus... A religião de Cristo, saindo como do deserto e das prisões, tomou posse do mundo. Até nas es¬tradas principais, nos íngremes cumes dos montes, nos fundos barrancos e nos vales distantes, nos tetos das casas, e nos mosaicos dos sobrados se via a cruz. A vitória era completa e decisiva. Até nas moedas de Constantino se via o lábaro com o monograma de Cristo levantando-se acima do Dragão vencido. Do mesmo modo o culto e o nome de Jesus se exaltaram acima dos deuses vencidos do paganis¬mo. De fato começava uma ordem de coisas inteiramente nova, e o imperador romano tornou-se o principal da igre¬ja. A administração do estado e dos negócios civis foi reu¬nida com o governo da igreja e podia-se presenciar o espe¬táculo extraordinário de um imperador romano presidir os concílios da igreja e tomar parte nos debates. Em geral os cristãos não se ressentiam desta intrusão, pelo contrário consideravam-na como um auspicioso e feliz presságio, e em lugar de censurar o imperador pelo seu intrometimento, receberam-no como bispo dos bispos. O povo de Deus aceitou a proteção de um estado semi-pagão, e o cristianismo sofreu a maior degradação possível com a proteção de um potentado do mundo. EFEITOS DA UNIÃO ENTRE A IGREJA E O ESTADO O efeito desastrado desta primeira união da igreja com o estado fez-se sentir imediatamente. Levantaram-se con¬tendas, e o imperador foi nomeado árbitro pelas partes contendoras. Mas logo que dava a sua decisão sobre a ques¬tão, esta continuava rejeitada com desprezo pela parte cu¬jas razões eram desatendidas. Repetiu-se a mesma coisa uma vez e outra, até que o imperador se indignou, e recor¬reu a meios violentos para reforçar o seu poder. Isso prova¬va até a evidência e inutilidade e a inconveniência daquela proteção a que os cristãos de tão boa vontade, mas tão ce¬gamente se submeteram. Até então tinham os concílios da igreja sido compostos de bispos e presbíteros de uma província, mas durante o reinado de Constantino foram consagradas as assembléias, que o imperador podia reunir e dissolver à vontade! Cha¬mavam-se concílios ecumênicos ou gerais, e tinham por fim a discussão das questões mais importantes da igreja. O PRIMEIRO CONCILIO ECUMÊNICO A primeira destas Assembléias reuniu-se em Nicéia, na Bitínia, para o julgamento de um tal Ário, que tinha esta¬do a ensinar que nosso Senhor fora criado por Deus como qualquer outro ser, sujeito ao pecado e ao erro, e que, por conseqüência, não seria eterno como o Pai. Foi a isso que Constantino chamou uma ninharia, quando o informaram da heresia; o concilio porém, com poucas exceções, deu-lhe o nome de horrível blasfêmia. Os bispos sentiram tanto a indignidade que Ário fizera pesar sobre o bendito Senhor, que tapavam os ouvidos enquanto ele explicava as suas doutrinas, e declararam que, quem expunha tais ensina¬mentos, era digno de anátema. Como repressão às heresias crescentes foi escrito a célebre confissão de fé, conhecida como o Credo de Nicéia, no qual está clara e inteiramente anunciada a doutrina das Escrituras Sagradas com refe¬rência à divindade do Senhor. Ário e seus adeptos recebe¬ram ao mesmo tempo sentença de desterro, e possuir ou fa¬zer circular os seus escritos era considerado como grande ofensa. A conduta posterior do soberano mostrou que o seu modo de proceder naquela ocasião não obedecia a nenhu¬ma convicção profunda nem determinada. A pedido de sua irmã Constância, cujas simpatias pelo partido ariano eram bastante fortes, ordenou que o heresiarca voltasse do exí¬lio, e revogou a interdição dos seus escritos. Ário foi, por¬tanto, plenamente restituído ao favor do imperador, e tra¬tado na corte com todas as distinções. ATANÁSIO, BISPO DE ALEXANDRIA Mas o triunfo de Ário não foi completo. Encontrou um adversário poderoso e infatigável em Atanásio, bispo de Alexandria, o qual já tinha derrotado durante as reuniões do concilio em Nicéia, e que apesar de ser apenas diácono naquele tempo, tomara parte notável na discussão, e desde então sempre continuara a ser acérrimo defensor da verda¬de e um ativo antagonista das malévolas intenções dos arianos. Um mandato imperial de Constantino para que os he-reges excomungados fossem admitidos à igreja, foi recebi¬do pelo bispo com um desprezo deliberado e firme: não queria submeter-se a qualquer autoridade que procurasse pôr de parte a divindade do seu Senhor e Salvador. Contu-do, os seus inimigos estavam resolvidos a levar por diante os seus propósitos e aquilo que não puderam obter por bons meios tentaram alcançar por meios infames. Fizeram uma acusação horrível contra o bispo, no sentido de ter ele cau¬sado a morte de um bispo miletino chamado Arsino, de cuja mão, diziam eles, se serviu para fins de feitiçaria. Foi, por conseqüência, intimado a responder perante um conci¬lio em Cesaréia, pela dupla acusação de feitiçaria e assassínio: mas Atanásio recusou-se a comparecer ali por ser o tribunal composto de inimigos. Foi pois convocado outro concilio em Tiro, e a este assistiu o bispo. A mão que devia ter servido para prova do crime apareceu no tribunal, mas infelizmente para os acusadores o dono da mão, o bispo as¬sassinado, também lá estava vivo e ileso! DESTERRO DE ATANASIO Ainda assim, esta farça não impôs aos seus adversários o silêncio que a vergonha devia produzir, e apressaram-se em preparar uma nova acusação. Afirmaram que Atanásio ameaçava reprimir a exportação do trigo de Alexandria para Constantinopla, o que traria a fome para esta cidade, pensando eles, e com razão, que bastava só atribuir-lhe este mau procedimento para levantar a inveja e desagrado do imperador, cujos maiores interesses estavam ali con¬centrados. Os seus planos tiveram bom êxito. Com esta simples acusação, pois a verdade dela nunca foi provada, obtiveram uma sentença de desterro, e Atanásio foi man¬dado para Treves, no Reno, onde se conservou dois anos e quatro meses. MORTE DE ÁRIO Mas o desterro do bispo fiel não assegurou os resultados pelos quais o partido de Ario estava a combater. Os Cris¬tãos de Alexandria também tinham sido muito bem ins¬truídos nas verdades das Escrituras Sagradas, e conserva¬vam-nas com tal amor, que não as abandonaram depois do seu ensinador partir. Não queriam ligar-se a compromisso algum e até mesmo quando Ario subscreveu uma fé orto¬doxa, o novo bispo, um velho servo de Deus chamado Ale¬xandre, duvidou da sua sinceridade, e não quis aceitar a sua retratação. Constantino teve de intervir novamente neste caso, e mandando chamar o bispo, insistiu para que Ario fosse recebido em comunhão no dia seguinte. Muitos viram nisto uma crise nos negócios da igreja, e os cristãos de Alexandria esperavam pelo resultado com muita ansie¬dade. Alexandre sentiu a sua fraqueza, e pensamentos in-quietadores lhe assaltaram o espírito; entrou na igreja e apresentou o seu caso diante do Senhor. A oração era o seu último recurso, mas não foi um recurso vão nem estéril. Os arianos já exultavam, e enquanto o bispo estava de joelhos diante do altar levaram eles o seu chefe em triunfo pelas ruas. De repente cessaram as ovações. Ario entrara em uma casa particular e ninguém parecia saber para quê. Todos esperavam, e se admiravam, mas esperavam em vão; o homem, cujo regresso aguardavam, tinha-se retira¬do dos seus olhares para nunca mais aparecer. Teve a mes¬ma sorte de Judas, e o grande herético estava morto. Atanásio disse mais tarde que a morte de Ário era uma refuta-ção suficiente da sua heresia. MORTE DE CONSTANTINO, O GRANDE Constantino não sobreviveu muito tempo a este acon¬tecimento. Morreu em 337 d.C. com sessenta e quatro anos de idade, tendo reinado quase trinta e um anos. E sua le¬gislação geral, diz um escritor moderno, manifesta a in¬fluência dos princípios cristãos; e o efeito destas leis huma-nitárias havia de ser sentido muito além do círculo da co¬munidade cristã. Decretou leis para que se guardasse melhor o domingo e contra a venda de crianças como escravos; e também con¬tra o roubo de crianças com o fim de se venderem e muitas outras leis de caráter tanto social como moral. Mas o fato mais importante e de maior influência do seu reinado, cheio de acontecimentos, foi a destruição dos ídolos e a exaltação de Cristo. Outro fato de importância, sob o pon¬to de vista cristão, foi a conversão dos etíopes e ibérios, que, segundo se diz, receberam o Evangelho durante esse mesmo tempo. DIVISÃO DO IMPÉRIO O império estava agora dividido entre os três filhos de Constantino, o Grande, ficando Constantino com a Gália, Espanha e a Bretanha; Constâncio com as províncias asiá¬ticas, e Constante, com a Itália e a África. Constantino favoreceu o partido católico ou ortodoxo, e fez voltar Atanásio do exílio, mas foi morto no ano 340, quando invadia a Itália. Constante, que tomou posse dos seus domínios, também seguia a causa dos católicos e foi amigo de Atanásio, porém Constâncio e toda a sua corte tomaram o partido dos arianos. UMA GUERRA RELIGIOSA Começou então uma guerra religiosa entre os dois ir¬mãos, e como geralmente acontece nas guerras religiosas, foi esta também notável pela crueldade e injustiça de ambos os lados. Entretanto, Atanásio foi novamente degredado, pelos esforços de Constâncio e dos bispos arianos; e Gregório de Capadócia, homem de caráter violento, foi colocado à for¬ça no seu lugar. Este procedimento iníquo deu ocasião a desordens e a cenas violentas, e tiveram de pedir auxílio à tropa para manter o bispo intruso na colocação que lhe ti¬nham dado. Foram depois convocados muitos e vários concílios, e publicados cinco credos diferentes, em outros tantos anos, mas parece que com pouco resultado. Em to¬dos estes concílios foi sempre confirmado a ortodoxia de Atanásio, porém não fizeram justiça ao velho bispo en¬quanto Gregório viveu. Mas depois da morte deste foi rein¬tegrado no seu lugar com grande alegria de todos aqueles que apreciavam a verdade e se agarravam à boa doutrina. MORTE DE CONSTANTE Constante, que desde o princípio se tinha mostrado um verdadeiro amigo de Atanásio, morreu no ano 359, e os arianos, com a proteção de Constâncio renovaram as suas perseguições. Tendo sido expulso pela terceira vez do seu lugar, Atanásio retirou-se voluntariamente para o exílio, e entrou, durante algum tempo, num refúgio dos desertos do Egito, onde pela meditação e oração se preparou para pos¬terior conflito. E, aqueles que professavam as suas doutri¬nas eram perseguidos com rigor devido à ascendência dos arianos. Por isso se dizia por toda a parte que os tempos de Nero e Diocleciano tinham voltado. MORTE DE CONTÂNCIO Constâncio morreu no ano de 361, e teve por sucessor Juliano, que tornou a chamar os bispos desterrados por Constâncio; mas não foi de certo por simpatia pelas suas doutrinas, porque ele pouco depois caiu no paganismo, e distingüiu-se tanto pelos seus esforços em restaurar a ido-latria, que mereceu o nome de Juliano, o Apóstata. Afir¬mou que o julgamento de Deus sobre os judeus, como esta¬vam preditos nos evangelhos e em outras partes, eram uma fábula, e fez uma ímpia tentativa de provar a sua afirmati¬va, mandando uma expedição à Palestina para reconstruir o templo. Mas os seus planos frustraram-se de uma manei¬ra milagrosa. Diz a tradição que saíam da terra línguas de fogo, fazendo ura barulho medonho, o que fez afastar os operários daquele lugar cheios de terror. Abandonaram portanto o trabalho; e as intenções ímpias de Juliano não vingaram. O MÁRTIR BASÍLIO Durante o reinado deste imperador, um cristão chama¬do Basílio tornou-se notável pelas suas denúncias destemi¬das do arianismo e da idolatria. O bispo ariano de Constantinopla ordenou-lhe que desistisse de pregar, mas Basí¬lio continuou apesar da ordem recebida/Afirmava ele que recebia ordens do Senhor e não dos homens. O bispo então denunciou-o como perturbador da ordem pública; mas o imperador (a quem a denúncia era dirigida se estava preparando nessa ocasião para uma expedição à Pérsia e não prestou a mínima atenção a esta acusação. Contudo, mais tarde, o zelo de Basílio contra o paganismo, fez cair sobre ele a indignação dos pagãos e foi levado à presença de Saturnino, governador de Ancira, que o man¬dou para o cavalete. A sua firmeza e paciência durante a tortura foi a admiração de todos quantos o viram, e foram imediatamente contar isto ao imperador. O interesse deste não se excitou menos do que a admiração dos seus súditos, e deu ordem para que o prisioneiro fosse trazido à sua pre¬sença. Basílio, que se interessava pelo bem do imperador, aproveitou essa ocasião para proclamar o Evangelho na sua presença e o avisou do perigo em que estava, devido ao seu desprezo pelo Filho de Deus. A censura, aplicada com tanta fidelidade, não deu, infelizmente, bom resultado; Juliano recebeu-o com desprezo, e mostrou o ódio que ti¬nha à religião cristã pela maneira com que tratou o ministro dela. Ordenou que Basílio fosse novamente conduzido a sua prisão e que todos os dias lhe separassem a carne dos ossos, até que o seu corpo estivesse completamente despe¬daçado. Esta sentença desumana foi cumprida, e o bravo mártir expirou na tortura no dia 28 de junho do ano 362 d.C. MORTE DE JULIANO Juliano não sobreviveu muito tempo a isso. No mesmo mês, quase no mesmo dia (26 de junho) do ano seguinte foi mortalmente ferido numa escaramuça com os asiáticos; e, quando jazia por terra, fraco e perdido, foi visto estender a mão para o Céu e murmurar estas palavras: "0 galileu, venceste!", e assim expirou. UM IMPERADOR VERDADEIRAMENTE CRISTÃO Joviano, que lhe sucedeu, foi talvez o primeiro governa¬dor do império romano verdadeiramente cristão: mas o seu reinado foi curto. Quis que Atanásio, que voltara de Ale¬xandria depois da morte de Juliano, fosse o seu mestre e conselheiro; e bem depressa ficou tão seguro da verdade que nem padres pagãos, nem arianos hereges, tinham po¬der algum sobre ele. Mas usou de tolerância para com to¬dos e, apesar de se ligar à verdade, sempre se viu rodeado de alguns que se opunham a ela. Na verdade, se podemos acreditar em Sócrates, que para autoridade cita o filósofo Temíscio, os adeptos do grande heresiarca Ário eram governados mais por conveniência do que por consciência, e re¬gulavam as suas opiniões pelas do poder reinante. Depois de um feliz reinado de oito meses, Joviano morreu por asfi-xia, em 17 de fevereiro do ano 364. Os seus sucessores, Valenciano e Valente, prometiam seguir os passos de seu pai mas Valente foi logo levado para o partido ariano por instigação de sua mulher, e foi batizado por um bispo ariano. MORTE DE ATANÁSIO Renovou em seguida os ataques a Atanásio e seus adeptos e o velho bispo depois de ter estado escondido por espa¬ço de quatro meses no sepulcro de seu pai teve de fugir ou¬tra vez de Alexandria. Contudo, a opinião popular não po¬dia consentir que ele estivesse muito tempo no exílio, e foi quase imediatamente chamado de novo. Pouco depois, no ano 373. terminou pacificamente a sua longa e agitada car¬reira. A sua morte foi considerada calamidade pública por todos os que velavam com solicitude os interesses do seu divino Mestre. Foi por pugnar pela grande verdade da Trindade que o venerável bispo fora desterrado três vezes, e acusado de herege pelos falsos padres de Ário. HISTÓRIA DO Cristianismo Dos apóstolos do Senhor Jesus ao século XX Todos os Direitos Reservados. Copyright (Q) 1984 para a língua por-tuguesa da Casa Publicadora das Assembléias de Deus. CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Knight, A. E. K77h História do cristianismo / A. E. Knight [e] W. Anglin. – 2ª ed. - Rio de Janeiro : Casa Publicadora das As¬sembléias de Deus, 1983. 1. História eclesiástica I. Anglin, W., colab. II. Título CDD - 270 83-0760 CDU - 27 Código para Pedidos: HT-905 Casa Publicadora das Assembléias de Deus Caixa Postal, 331 20001 Rio de Janeiro, RJ, Brasil 11a Edição 2001 Índice 1. Primeiro século da Era Cristã 2. Segundo século da Era Cristã 3. Quinta e sexta perseguições gerais 4. Sétima e oitava perseguições gerais 5. Nona e décima perseguições gerais 6. Quarto século da Era Cristã 7. Período semelhante a Pérgamo 8. Período semelhante a Tiatira 9. Nestorianos, paulícios e maometanos 10. Idolatria romana e o poder papal 11. Período mais tenebroso da Idade Média 12. Depois do ano do terror 13. Primeira cruzada 14. Da segunda à quarta cruzada 15. Da quinta à oitava cruzada 16. Perseguição na Europa e a Inquisição 17. Influência papal sobre a Reforma 18. O princípio da Reforma 19. Os reformadores antes da Reforma 20. Lutero e a reforma alemã 21. Zwínglio e a reforma suíça 22. Zelo de Lutero na Reforma 23. 0 formalismo depois da Reforma 24. Período semelhante a Sardo 25. Reforma na França e Suíça francesa 26. Reforma na Itália e outros países europeus 27. Reforma inglesa, no reinado de Henrique VIII 28. Auxílios e obstáculos à reforma inglesa 29. Reforma nos reinados de Eduardo VI, Maria e Isabel 30. História da Igreja desde a Reforma 1 Primeiro século da Era cristã A história da Igreja de Deus tem sido sempre, desde a era apostólica até o presente, a história da graça divina no meio dos erros dos homens. Muitas vezes se tem dito isso, e qualquer pessoa que examine essa história com atenção não pode deixar de se convencer que assim é. Lendo as Epístolas do Novo Testamento vemos que mesmo nos tempos apostólicos o erro se manifestou, e que a inimizade, as contendas, as iras, as brigas e as discór¬dias, com outros males, tinham apagado o amor no coração de muitos crentes verdadeiros. Deixaram as suas primeiras obras e o seu primeiro amor e alguns que tinham principiado pelo espírito, pro¬curavam depois ser aperfeiçoados pela carne. Mas havia muito mais do que isso. Não somente exis¬tiam alguns verdadeiros crentes em cujas vidas se viam muitas irregularidades, e que procuravam, pelas suas pa¬lavras, atrair discípulos a si, como também havia outros que não eram de modo algum cristãos, mas que entraram despercebidamente entre os irmãos, semeando ali a discór¬dia. Isto descreve o estado de coisas a que se referem os primeiros versículos do capítulo dois de Apocalipse, na carta escrita ao anjo da igreja em Éfeso. TEMPOS DE PERSEGUIÇÃO Porém estava para chegar um tempo de perseguição para a Igreja, e isso foi permitido pelo Senhor, na sua gra¬ça, a fim de que se pudessem distinguir os fiéis. Esta perseguição, instigada pelo imperador romano Nero, foi a primeira das dez perseguições gerais que conti¬nuaram, quase sem interrupção, durante três séculos. "Por que razão permite Deus que o seu povo amado so¬fra assim?"Muitas vezes se tem feito esta pergunta, e a resposta é simples: é porque Ele ama esse povo. Podia ha¬ver, e sem dúvida há, outras razões, porém a principal é esta - Ele o ama. "Porque o Senhor corrige o que ama ' e se o coração se desviar, tornar-se-á necessária a disciplina. Com que facilidade o mal se liga, mesmo ao melhor dos homens! Mas, na fornalha da aflição, a escória separa-se do metal precioso, sendo aquela consumida. Ainda mais, quando suportamos a correção de Deus, Ele nos trata como filhos; e se sofremos com paciência, cada provocação pela qual Ele nos faz passar dará em resultado mais uma bên¬ção para a nossa alma. Tal experiência não nos é agradá¬vel, nem seria uma provocação se o fosse, porém, à noite de tristeza sucede a manhã de alegria, e dizemos com o salmista Davi: "Foi bom para mim, ter sofrido aflição". PORQUE E QUE DEUS PERMITE A PERSEGUIÇÃO Mas Deus permite, algumas vezes, que a malvadez leve o homem muito longe em perseguir os cristãos, a fim de fi¬car manifestado o que está no seu coração, e por isso não é de estranhar que na alma do cristão que não tem apreciado esta verdade se levantem dúvidas e dificuldades, e que co¬mece a queixar-se de o caminho ser custoso, e da mão do opressor ser pesada sobre ele. 8 O Senhor porém não nos deixa na Terra para nós nos queixarmos das dificuldades, nem para recuarmos diante da ira dos homens: temos de servir ao Mestre e resistir ao inimigo, porém é somente quando estamos fortalecidos no Senhor e na força do seu poder que podemos prestar esse serviço, ou resistir efetivamente a esse inimigo. Esta história pretende indicar quão dignamente se fez isto nos tempos passados, porém se quisermos compreen¬der a maneira como Deus tem tratado o seu povo, sempre nos devemos lembrar de que a milícia cristã é diferente de qualquer outra, e que uma parte da sua resistência é o so¬frer. As armas da nossa milícia não são carnais, mas sim es¬pirituais, e o cristão que se serve de armas carnais mostra sem dúvida que não aprecia o caráter do verdadeiro crente. Não pode ter apreciado com inteligência espiritual o cami¬nho do seu Senhor, ou compreendido o sentido das suas palavras: "O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo pelejariam os meus servos". A igreja militante é uma igreja que sofre, mas se empre¬gar as armas carnais, deixa na verdade de combater. No ousado e santo Estêvão temos um exemplo do ver¬dadeiro crente militante. Foi ele o primeiro mártir cristão. E que grande vitória ele ganhou para a causa de Cristo quando morreu pedindo ao Senhor pelos seus perseguido¬res! Davi, séculos antes da era cristã, disse: "O justo se ale¬grará quando vir a vingança : lavará os seus pés no sangue do ímpio", porém Estêvão, que viveu na época cristã, orou:"Senhor, não lhes imputes este pecado". Isto foi um exemplo da verdadeira milícia cristã. A primeira onda da perseguição geral que veio sobre a igreja fez-se sentir no ano 64, no reinado do imperador Ne-ro, que tinha governado já com uma certa tolerância du¬rante nove anos. Neste tempo, o assassinato de sua mãe, e a sua indife¬rença brutal depois de ter praticado aquele crime tão monstruoso, mostrou claramente a sua natural disposição, e indicou ao povo aquilo que havia de esperar dele. Desgra¬çadamente, as tristes apreensões que muitos tinham a seu respeito tornaram-se em negra realidade. ROMA INCENDIADA Uma noite no mês de julho, no ano acima citado, os ha¬bitantes de Roma foram despertados do sono pelo grito de "Fogo!" Esta terrível palavra fez-se ouvir simultaneamen¬te em diversas partes da cidade, e dentro de poucas horas a majestosa capital ficou envolvida em chamas. A grande arena situada entre os montes Palatino e Aventino, onde cabiam 150.000 pessoas, em pouco tempo estava ardendo, assim como a maior parte dos edifícios públicos, os monu¬mentos, e casas particulares. O fogo continuou por espaço de nove dias, e Nero, por cujas ordens se tinha praticado este ato tão monstruoso, presenciou a cena da torre de Mecenas, onde manifestou o prazer que teve em ver a beleza do espetáculo, e, vestido como um ator, acompanhando-se com a música da sua li¬ra, cantou o incêndio da antiga Tróia! O grande ódio que lhe votaram em conseqüência deste ato, envergonhou-o e tornou-o receoso; e com a atividade que lhe deu a sua consciência desassossegada, logo achou o meio de se livrar dessa situação. O rápido desenvolvimento do cristianismo já tinha levantado muitos inimigos contra essa nova doutrina. Muita gente havia em Roma que esta¬va interessada na sua supressão - por isso não podia haver nada mais oportuno, e ao mesmo tempo mais simples para Nero, do que lançar a culpa do crime sobre os inofensivos cristãos. Tácito, um historiador pagão, que não era de modo al¬gum favorável ao cristianismo, fala da conduta de Nero da seguinte maneira: "Nem os seus esforços, nem a sua generosidade para com o povo, nem as suas ofertas aos deuses, podiam pagar a infame acusação que pesava sobre ele de ter ordenado que se lançasse fogo à cidade. Portanto, para pôr termo a este boato, culpou do crime, e infligiu os mais cruéis casti¬gos, a uns homens... a quem o vulgo chamava cristãos", e acrescenta: "quem lhes deu esse nome foi Cristo, a quem Pôncio Pilatos, procurador do imperador Tibério, deu a morte durante o reinado deste. "Esta superstição perniciosa, assim reprimida por al¬gum tempo, rebentou de novo, e espalhou-se não só pela Judéia, onde o mal começara, mas também por Roma, para onde tudo quanto é mau na terra se encaminha e é praticado. Alguns que confessaram pertencer a essa seita foram os primeiros a ser presos; e em seguida, por informa¬ções destes prenderam mais uma grande multidão de pes¬soas, culpando-as, não tanto do crime de terem queimado Roma, mas de odiarem o gênero humano". É quase escusado dizer que os cristãos não nutriam ó-dio algum pela humanidade, mas sim pela terrível idola¬tria que prevalecia em todo o Império Romano; e só por este motivo eram considerados como inimigos da raça hu¬mana. CRUÉIS TORMENTOS DOS CRENTES Não se sabe quantos sofreram por essa ocasião, mas de certo foram muitos, e eram-lhes aplicadas todas as tortu¬ras que um espírito engenhoso e cruel podia imaginar, para satisfazer os depravados gostos do imperador. "Alguns foram vestidos com peles de animais ferozes, e perseguidos pelos cães até serem mortos, outros foram cru¬cificados; outros envolvidos em panos alcatroados, e de¬pois incendiados ao pôr do sol, para que pudessem servir de luzes para iluminar a cidade durante a noite. Nero ce¬dia os seus próprios jardins para essas execuções e apresen¬tava, ao mesmo tempo, alguns jogos de circo, presenciando toda a cena vestido de carreiro, indo umas vezes a pé no meio da multidão, outras vendo o espetáculo do seu car¬ro". Hegesipo, um escritor do II século, faz algumas refe¬rências interessantes sobre o apóstolo Tiago, que acabou a sua carreira durante esse período, e fornece um detalhado relatório do seu martírio, que podemos inserir aqui. "Consta que o apóstolo tinha o nome de Oblias, que significava justiça e proteção, devido à sua grande piedade e dedicação pelo povo. Também se refere aos seus costu¬mes austeros, que sem dúvida contribuíram para aumen¬tar a sua fama entre o povo. Ele não bebia bebidas alcoóli¬cas de qualidade alguma, nem tampouco comia carne. Só ele teve licença de entrar no santuário. Nunca vestiu roupa escolhendo ele aquela posição por se achar indigno de so¬frer na mesma posição em que sofreu o seu Senhor. Paulo que sofreu no mesmo dia foi poupado a uma morte tão do¬lorosa e lenta, sendo degolado. "A estes santos apóstolos", acrescenta Clemente, "se ajuntaram muitos outros, que tendo da mesma maneira sofrido vários martírios e tormentos, motivados pela inveja dos outros, nos deixaram um glorioso exemplo. "Pelos mesmos motivos, foram perseguidos, tanto mu¬lheres como homens, e tendo sofrido castigos terríveis e cruéis, concluíram a carreira da sua fé com firmeza." MORTE DE NERO O miserável Nero morreu às suas próprias mãos, no ano 63, cheio de remorsos e de medo; depois da sua morte a igreja teve descanso por espaço de trinta anos. Contudo durante esse tempo Domiciano (que podia quase levar a palma a Nero, quanto à intolerância e crueldade) subiu ao trono; e depois de quatorze anos do seu reinado, rebentou a perseguição geral. Tendo chegado aos ouvidos do imperador que alguém, descendente de Davi, e de quem se tinha dito: "Com vara de ferro regerá todas as nações", vivia na Judéia, fez com que se procedesse a investigação, e dois netos de Judas, o irmão do Senhor Jesus, foram presos e conduzidos à sua presença. Quando ele, porém, olhou para as suas mãos, calosas e ásperas pelo trabalho, e viu que eram uns homens pobres, que esperavam por um reino celeste, e nada queriam saber do reino terrestre, despediu-os com desprezo. Diz-se que eles foram corajosos e fiéis em testemunhar a verdade pe¬rante o imperador, e que, quando voltaram para sua terra natal, foram recebidos com amizade e honras pelos irmãos. PERSEGUIÇÃO A JOÃO Pouco se sabe a respeito desta perseguição; mas esse pouco é sem dúvida interessante. E entre os muitos márti¬res que sofreram, encontra-se João, o discípulo amado de Jesus, e Timóteo, a quem Paulo escreveu com tão afeiçoa-da solicitude. Diz a tradição que o primeiro foi lançado, por ordem do tirano, numa caldeira de azeite fervente mas, por um milagre, saiu de lá ileso. Incapaz de o ferir no corpo, o imperador desterrou-o para a ilha de Patmos, onde foi obrigado a trabalhar nas minas. Foi ali que ele es¬creveu o livro de Apocalipse, e teria sem dúvida terminado ali mesmo a sua vida, se não fosse a inesperada morte do imperador, assassinado pelo próprio administrador da sua casa, no dia 18 de Setembro de 96 d.C. Sendo então o após¬tolo João posto em liberdade, voltou para Éfeso, onde es¬creveu a sua história do Evangelho e as três epístolas que têm o seu nome. Parece que ali, como sempre, foi levado em toda a sua vida pelo amor, e quando morreu, na avançada idade de cem anos, deixou, como legado duradouro, este simples preceito: "Filhinhos, amai-vos uns aos outros". Frase sim¬ples esta, e pronunciada há muitos anos, mas qual de nós tem verdadeiramente aprendido o seu sentido? ASSASSINATO DE TIMÓTEO Timóteo sustentou virilmente a verdade, na mesma ci¬dade, até o ano 97, em que foi morto pela turba numa festa idolatra. Muitos homens do povo, mascarados e armados de paus, dirigiam-se para os seus templos para oferecer sa¬crifícios aos deuses, quando este servo do Senhor os encon-trou. Com o coração cheio de amor, encaminhou-se para eles, e lembrando-se talvez do exemplo de Paulo, que pou¬cos anos antes tinha pregado aos idolatras de Atenas, fa¬lou-lhes também do Deus vivo e verdadeiro. Mas eles não fizeram caso do seu conselho, zangaram-se por serem re¬provados e, caindo sobre ele com paus, bateram-lhe tão desapiedadamente, que expirou poucos dias depois. E agora, lançando a vista por um momento para os tempos passados, encontram-se, de certo, na história destas primitivas perseguições, muitos exemplos para dar ânimo e coragem aos nossos corações. Em vista de tais sofrimen¬tos, não se pode deixar de admirar o ânimo dos santos, e agradecer a Deus a graça pela qual eles puderam suportar tanto com tão sofredora paciência. Nem a cruz, nem a espada nem os animais ferozes, nem a tortura, puderam prevalecer contra aqueles fiéis discípu¬los de Jesus Cristo. Quem os poderia separar do seu amor? Seria a tribulação, ou a angústia, ou a perseguição, ou a fo¬me, ou a nudez, ou o perigo, ou a espada? Não! Em todas essas coisas eles foram mais do que vencedores por meio daquele que os amou. Não lhes dissera o Senhor que de¬viam esperar tudo isso? Não tinha Ele dito aos seus discí¬pulos, quando ainda estava entre eles: "No mundo ter eis aflições"? e não era bastante compensação para os seus so-frimentos, que duraram poucos anos, a brilhante esperan¬ça da glória eterna que Ele lhes tinha dado? Depois de mais alguns anos, tanto perseguidores como perseguidos teriam deixado este mundo, e passado para a eternidade; então - que grande mudança! Para os primei¬ros, a escuridão das trevas para sempre; para os últimos, aquele "peso eterno de glória muito excelente". Que con¬traste! HERESIAS E DISSENSOES Estando para terminar este capítulo, devemos notar a impossibilidade que temos em vista, por causa do pequeno espaço de que dispomos, de enumerar todas as heresias e dissensões que têm entristecido e dividido a Igreja de Deus desde o seu princípio; portanto, apenas nos propomos a lançar a vista para os atos que nos apresentem maior inte¬resse, tanto pela sua especial astúcia, como pela sua gran¬de influência. O gnosticismo era um desses males, e foi talvez a pri¬meira heresia que depois dos tempos dos apóstolos se de¬senvolveu mais. Era um amontoado de erros que tinham a sua origem na cabala dos judeus, uma ciência misteriosa dos rabinos, baseada na filosofia de Platão, e no misticis¬mo dos orientais. Um judeu chamado Cerinto, mestre de filosofia em Alexandria, introduziu parte do Evangelho nesta massa heterogênea da ciência (falsamente assim chamada) e sob esta nova forma foram enganados muitos crentes verdadeiros, e se originou muita amargura e dissensão. Mas havia muito tempo que não se ocupavam com esse erro, nem com muitos que se lhe seguiram, e a Palavra de Deus, que é a única que contém as doutrinas inabalá¬veis da Igreja, já tinha predito que "os homens maus e en¬ganadores irão de mal a pior, enganando e sendo engana¬dos" (2 Tm 3.13). Já o apóstolo Paulo tinha aconselhado o seu filho Timóteo a opor-se aos clamores vãos e profanos que só poderiam produzir maior impiedade (2 Tm 2.16); e se tinha referido, em linguagem inspirada pelo Espírito Santo, às "perversas contendas de homens corruptos de entendimento e privados da verdade" (1 Tm 6.5): "Mas tu, ó homem de Deus", clamou ele, "foge destas coisas, e segue a justiça, a piedade, a fé, a caridade, a paciência, a mansidão. Milita a boa milícia da fé, lança mão da vida eterna, para a qual também foste chamado, tendo já feito boa confissão diante de muitas testemunhas" (1 Tm 4.11, 12). O amado apóstolo já tinha combatido o bom combate e acabado a sua carreira e guardado a fé, e com a consciência que o esperava pronunciou palavras que deviam servir para animar a Igreja de Deus nos tempos futuros: "Pelo demais a coroa da justiça está-me guardada, a qual o Se¬nhor, justo juiz, me dará naquele dia; e não somente a mim, mas também, a todos os que amarem a sua vinda" (2 Tm 4.7,8). 2 Segundo século da Era cristã REINADOS DE NERVA, TRAJANO E MARCO AURÉLIO Havia apenas dezoito meses que Domiciano tinha mor¬rido, quando a igreja, que ficara isenta de perseguição du¬rante o curto reinado de Coccei Nerva, seu sucessor, come¬çou novamente a sofrer. Nerva era um homem de caráter brando e generoso, e tratou bem os cristãos; e com uma benignidade digna de louvor restabeleceu todos que tinham sido expatriados pela perseguição de Domiciano. Porém, depois de um reinado de dezesseis meses, foi atacado por uma febre, da qual nunca se curou. O seu sucessor, Trajano, deixou os cristãos tranqüilos por algum tempo, mas sendo levado a suspeitar deles, de¬terminou que se renovasse a perseguição, e, sendo possível, que se exterminasse a nova religião, por meios decisivos e severos. Parecia ao seu espírito orgulhoso que o cristianis-mo era uma ofensa, um insulto para a natureza humana, e que o seu ensino era (como efetivamente o era) inteiramente oposto à filosofia dos seus tempos: uma filosofia que ele¬vava os homens a deuses, e tornava a humildade e brandura dos cristãos efeminada e desprezível. Mas Trajano não tinha a crueldade de Nero, nem de Domiciano; e podia-se notar nessa ocasião uma perplexi¬dade e indecisão na sua conduta, que contrastava, de uma maneira notável, com a inflexibilidade de propósito que ordinariamente mostrava nos seus atos. Pela sua carta a Plínio, governador de Bitínia e Ponto, pode-se ver que ele não sentia prazer algum na tortura ou na execução dos seus súditos. Nessa carta diz ele claramente: "Não se deve andar a procura dessa gente" e acrescenta: "se alguém re-nunciar ao cristianismo, e mostrar a sua sinceridade supli¬cando aos nossos deuses, alcançará o perdão pelo seu arre¬pendimento". Em suma, era a religião, e não os seus adep¬tos, que Trajano odiava, UMA CARTA DE PLÍNIO A carta de Plínio ao imperador e a resposta deste, são cheias de interesse. Um dos períodos dessa carta rezava assim: "Todo o crime ou erro dos cristãos se resume nisto: têm por costume reunirem-se num certo dia, antes do romper da aurora, e cantarem juntos um hino a Cristo, como se fosse um deus, e se ligarem por um juramento de não co¬meterem qualquer iniqüidade, de não serem culpados de roubo ou adultério, de nunca desmentirem a sua palavra, nem negarem qualquer penhor que lhes fosse confiado, quando fossem chamados a restituí-lo. Depois disto feito, costumam separar-se e em seguida reunirem-se de novo, para uma refeição simples da qual partilham em comum, sem a menor desordem, mas deixaram esta última prática após a publicação do edital em que eu proibia as reuniões, segundo as ordens que recebi. Depois destas informações julguei muito necessário examinar, mesmo por meio da tortura, duas mulheres que diziam ser diaconisas, mas nada descobri a não ser uma superstição má e excessiva". Isto era tudo o que Plínio podia dizer. Não é para admirar que um homem estranho à graça de Deus visse na religião de Jesus Cristo, desprezado e humilde, apenas uma su¬perstição má e excessiva. Não é motivo de admiração que o urbano e instruído governador, cuja fama era conhecida no mundo inteiro, escrevesse com tal desdém a respeito de um povo cujas opiniões eram diferentes das suas. "O homem natural não compreende as coisas do Espírito de Deus, porque lhe parecem loucura; e não pode entendê-las, por¬quanto se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14). MARTÍRIO DE INÁCIO Inácio, que dizem ter conhecido os apóstolos Pedro e João, e ter sido ordenado bispo de Antioquia pelo apóstolo João, foi martirizado durante essa época. O zelo com que ambi¬cionava sofrer o martírio o expôs a censuras de vários his¬toriadores, e com certa razão. Conta-se que na ocasião em que Trajano visitou Antioquia, ele pediu para ser admitido a presença do imperador, e depois de explicar, por bastan¬te tempo, as principais doutrinas da religião cristã, e mos¬trar o caráter inofensivo daqueles que a professavam, pe¬diu que se fizesse justiça. Contudo o imperador recebeu o seu pedido com desprezo, e depois de censurar aquilo que Trajano se aprazia de chamar a sua superstição incurável, ordenou que fosse levado para Roma e lançado às feras. Enquanto atravessava a Síria, Inácio escreveu várias cartas às igrejas, exortando-as à fidelidade e paciência, e avisando-as seriamente dos erros que se ensinavam. Em uma das epístolas escreve: "Desde a Síria até Roma estou lu¬tando com feras por terra e por mar, de noite e de dia sendo levado preso por dez soldados cuja ferocidade iguala a dos leopardos, e os quais, mesmo quando tratados com brandura, só mostram crueldade. Mas no meio destas iniqüidades, estou aprendendo... Coisa alguma, quer seja visível ou invisível, desperta a minha ambição, a não ser a esperança de ganhar Cristo. Se o ganhar, pouco me importarei que todas as torturas do Demônio me acometam, quer seja por meio do fogo ou da cruz, ou pelo assalto das feras ou que os meus ossos sejam separados uns dos outros e meus membros dilacerados, ou todo o meu corpo esmagado". Quando Inácio chegou a Roma, foi conduzido à arena e, na presença da multidão que enchia o teatro, tranqüila¬mente esperou a morte. Quando o guarda dos leões veio soltá-los da jaula o povo quase enlouqueceu, e batia as pal¬mas e gritava com uma alegria brutal, mas o velho mártir conservou-se firme. "Sou, disse ele, como o trigo debulhado de Cristo, que precisa de ser moído pelos dentes das feras antes de se tor¬nar em pão". Não precisamos entrar nos detalhes dos pou¬cos momentos que se seguiram. O medonho espetáculo acabou-se depressa, e antes de aquela gente ter chegado a suas casas, tinha Inácio recebi¬do a coroa que ambicionara, e estava já com o Senhor na Glória. TRINTA ANOS DE SOSSEGO No ano 117 morreu Trajano, e o seu sucessor, Adriano, continuou as perseguições. E foi só no ano 138, quando An¬tônio Pio subiu ao trono, que os cristãos ficaram de alguma maneira aliviados dessa opressão. Com o seu reinado bran¬do e pacífico começou um período de sossego que durou perto de trinta anos; e durante esse tempo a Palavra de Deus teve livre curso e Cristo foi glorificado. E certo que houve alguns casos isolados de opressão, mas a perseguição geral tinha desaparecido e o Evangelho depressa se espa-lhou por todas as províncias dos domínios romanos. A gloriosa mensagem foi levada para o Ocidente até nas extremidades da Gália e para o Oriente até a Armênia e a Assíria; e milhares daqueles que em vão tinham procurado a paz de coração nas mitologias de Roma e do Egito, escu¬taram avidamente as palavras da vida, e espontaneamente se tornaram discípulos de Cristo. UMA NOVA PERSEGUIÇÃO Contudo, com a subida ao trono de Marco Aurélio, co¬meçou uma nova opressão, e no segundo ano do seu reina¬do, as nuvens da perseguição começaram de novo a amon¬toar-se. As várias inquietações quase se seguiram uma após ou¬tra com espantosa rapidez, e que pareciam, às vezes, per¬turbar as próprias instituições do Império, forneceram um pretexto fácil para a renovação das perseguições; e logo em seguida o antigo ódio pelos cristãos que havia muito estava guardado nos corações dos ímpios, começou mais uma vez a manifestar-se pelo antigo grito "Lancem os cristãos aos leões!" tão terrivelmente familiar aos ouvidos de muitos, e que passou como um sopro pestilento pelo Império Orien¬tal. Assim teve origem a quarta perseguição geral. MARTÍRIO DE POLICARPO A maior força da tempestade que se aproximava sen¬tiu-se na Ásia Menor, onde saíram os novos editos, e o nome de Policarpo, bispo em Esmirna, apareceu brilhan¬temente na lista dos mártires daquele tempo. Ao contrário de Inácio que se expunha desnecessariamente à vontade cega da populaça, Policarpo não recusou escutar os conse¬lhos e pedidos dos seus amigos, e quando viu que estava sendo espiado em Esmirna retirou-se para uma aldeia pró¬xima, e ali continuou o seu trabalho. Sendo perseguido, foi para outra aldeia, exortando o povo que se encontrava no seu caminho; e assim foi viven¬do dessa maneira errante até que os seus inimigos des¬cobriram o lugar onde se refugiava. Então o velho bispo (avisado, segundo dizem, num sonho de que deveria glorificar a Deus, sofrendo morte de mártir) resignou-se com pa¬ciência à vontade de Deus, e entregou o seu corpo às mãos dos oficiais encarregados de o prenderem. Antes de deixar a casa, deu ordem para que lhes dessem de comer; e, em se-guida, parecendo saber antecipadamente o que esperava, encomendou-se a Deus. Diz-se que o fervor de sua oração comoveu de tal maneira os oficiais que eles se arrepende¬ram de ser os instrumentos da sua captura. Montaram-no num jumento, e trouxeram-no para Esmirna, onde estava reunida uma grande multidão para celebrar a festa dos pães asmos. Por consideração pela sua idade avançada e pela sua sabedoria, Nicites, homem de grande influência, e seu filho Herodes, oficial da cidade, foram ao seu encontro e, fa¬zendo-o entrar no seu carro, instaram com ele para que as¬segurasse a sua liberdade, tributando honras a César e consentindo em oferecer sacrifícios aos deuses. Ele recu¬sou-se a isto e, por esse motivo, foi empurrado do carro com tal violência abaixo que na queda torceu uma coxa. Mas o velho servo de Deus continuou pacificamente o seu caminho, sem se perturbar com a rudeza de Herodes, indi¬ferente aos gritos da multidão que, no seu ódio, empurra¬va-o de um lado para outro; e deste modo chegaram à are¬na. POLICARPO E O GOVERNADOR Era este o sítio onde tinham chegado os jogos e exposi¬ções sagradas; e conta-se que na ocasião de entrar na are¬na, uma voz, como que vinda do céu, exclamou: "Sê forte Policarpo, e porta-te como um homem". Seja como for, um poder que não era humano susteve o servo de Deus, e quando o cônsul, comovido com o seu aspecto venerável, pediu-lhe que jurasse pela alma de César, e dissesse: "Fora com os ímpios!" O velho mártir, apontando para os bancos cheios de gente, repetiu com tristeza: "Fora com os ímpios!" "Jurai", disse o governador, compadecido, "e eu vos mandarei embora. Renegai a Cristo." Mas Policarpo respondeu com brandura: "Tenho-o servido durante oiten¬ta e sete anos, e nunca Ele me fez mal. Como posso eu ago¬ra blasfemar contra o meu Rei e Salvador?" "Jurai pela alma de César", repetiu o governador ainda inclinado à compaixão, mas Policarpo respondeu: "Se julgais que hei de jurar pela alma de César como dizeis, e fingis não saber quem eu sou, ouvi a minha confissão livre: sou cristão; e se desejais conhecer a doutrina do cristianis-mo, concedei-me um dia para falar-vos e escutai-me". 0 governador, notando com inquietação o clamor da multi¬dão, pediu ao ancião que abjurasse sua fé, mas Policarpo se negou a fazer isso. Tinham-lhe ensinado a honrar os poderes superiores, e sujeitar-se a eles porque eram ordena¬dos por Deus, mas quanto ao povo, principalmente no es¬tado atual de turbulência em que se encontrava, nada lhe apresentaria em sua defesa. "Tenho à mão animais fero¬zes", disse o governador, "lançar-vos-ei a eles, se não mudardes de opinião" - "Mandai-os vir", disse Policarpo tranqüilamente. O velho peregrino alegrava-se com a perspectiva de se ver prontamente livre de um mundo ímpio e cheio de per¬seguições, e sua tranqüila intrepidez exasperou o governa¬dor, que por esse motivo ameaçou queimá-lo, mas o intré¬pido Policarpo respondeu: "Ameaçais-me com o fogo que arde por um momento, e depressa se apaga, mas nada sabeis da pena futura, e do fogo eterno reservado aos ímpios". O governador perdeu completamente a paciência, mandou um arauto apregoar no meio da arena: "Policarpo é cristão". Esta proclamação foi repetida três vezes, como era de costume e a raiva da população chegou ao auge. Vi¬ram no velho prisioneiro um homem que tinha desprezado os seus deuses, e cujo ensino tinha retirado o povo dos seus templos, e tornou-se geral o grito de: "Lancem Policarpo aos leões!" Mas a hora do espetáculo já tinha passado, e o asiarca que tinha aos seus cuidados os espetáculos públicos recu¬sou-se a fazer a vontade do povo. Se ainda estavam dispos¬tos a dar-lhe a morte, tinham de escolher qualquer outro dia: assim pois, se ouviu imediatamente o grito para que Policarpo fosse queimado. A lenha e a palha estavam ali à mão, e a vítima depois de ser despojada da sua capa, foi le¬vada às pressas para o poste. Queriam pregá-lo a ele, mas Policarpo pediu-lhes para ser simplesmente atado, e con¬cederam-lhe isso. Tendo em seguida recomendado a sua alma a Deus deu o sinal ao algoz, e este logo lançou fogo à palha. Mas, diz a tradição, os acontecimentos maravilhosos do dia ainda não tinham chegado ao seu fim. Por qualquer razão desconhe¬cida, as chamas não tocaram no corpo de Policarpo, e os espectadores, vendo-se enganados, olhavam uns para os outros na maior admiração. Contudo, o ódio venceu a superstição, e pediram ao al¬goz que matasse a vítima a golpes de espada. Assim se fez, o golpe fatal foi imediatamente dado, e naquele momento de cruel martírio, o fiel servo do Senhor entregou a alma a Deus, e ficou para sempre longe do alcance dos seus perse-guidores. OUTROS MARTÍRIOS Muitos outros, em nada inferiores na fé e valor a Poli-carpo, ainda que menos distintos pelas suas aptidões, so¬freram durante esta perseguição, e seria de muito interesse falar de alguns se o espaço permitisse. Seria, por exemplo, interessante falar de Germano, um jovem cristão cuja constância e coragem deram um testemunho tão brilhante da realidade de sua fé, mesmo na hora solene de sua morte, que muitos se converteram; ou de Justino de Nápoles, o qual, tendo estudado todos os sistemas filosóficos, e ocu¬pando um lugar de destaque entre os professores do seu tempo, tomou-se com alegria um discípulo do meigo e sublime Jesus. E maravilhoso dizer que ele depois selou com o seu sangue o testemunho que tinha dado e alcançou no seu martírio um nome nobre - o de Justino, o filósofo, por que ainda é conhecido, e pelo qual será chamado para receber a sua coroa de mártir. PERSEGUIÇÃO EM LIÃO E VIENA Em Lião e Viena também a fé dos crentes foi duramen¬te provada, porque o inimigo das almas andava muito ati¬vo. Toda a espécie de tortura que o espírito humano podia imaginar era infligida aos cristãos daquelas cidades; mas o número aumentava sempre; e qualquer esforço que se fi¬zesse para exterminar a nova religião não fazia senão espa¬lhá-la cada vez mais, e com maior rapidez. Foi ali que Blandina, uma escrava de aparência fraca e franzina, de¬pois de sofrer com exemplar paciência as mais extraordi¬nárias torturas, durante as quais os próprios perseguidores se cansaram, ganhou a coroa do martírio, e morreu dando glórias a Deus. Ali também Santos, diácono da igreja, e Mauro, que havia pouco se convertera ao cristianismo, sofreram nobremente pela verdade, bem como Attalo, de Pérgamo; Potimo, bispo de Lyon, e muitos outros. E assim, da mesma maneira que o metal precioso passa pelo fogo do refinador que o torna puro, também a Igreja de Deus passou pelo fogo e aflição, e uma grande parte da escória que andava ligada a ela separou-se e consumiu-se, enquanto que as fagulhas que saem do lume, levadas para aqui e para ali pelo vento da perseguição, atearam no peito de muitos o desejo de compreenderem este extraordinário assunto e, por assim dizer, entenderem a natureza deste novo metal que de tal modo podia suportar a prova de fo¬go. UMA CARTA A JUSTINO Parece que até este tempo, a igreja tinha conservado aque¬la simplicidade de conduta e culto de que temos alguns be¬los exemplos em Atos dos Apóstolos, e em outros livros. Conta o mártir Justino as práticas que se faziam no seu tempo, e que não deixam de ser interessantes: "Encontra¬mo-nos no dia do Senhor", diz ele, "para adoração, nas ci¬dades e vilas; lemos nos livros dos profetas e das memórias dos apóstolos tanto quanto o tempo nos permite. Acabada a leitura, o presidente ou bispo, num discurso ou sermão, exorta os fiéis a seguirem aqueles excelentes exemplos; em seguida todos se levantam e oram juntos. Depois disto tra¬zem pão, vinho e água, e o presidente faz oração e dá gra¬ças conforme a sua habilidade, e toda a gente diz "Amém". Faz-se então a distribuição dos elementos abençoa-dos a todos os presentes, e aos ausentes manda-se pelos diáconos. "Aqueles que são ricos, e estão dispostos a contribuir dão o dinheiro que querem, cada qual conforme a sua von¬tade; e o que se junta é entregue ao presidente, que o dis¬tribui cuidadosamente para os órfãos e as viúvas, e para aqueles que por doença ou outro qualquer motivo estão ne¬cessitados, e também aos que se acham presos, e aos es¬trangeiros que residem conosco. Em suma, à todos aqueles que precisam de auxílio". Que bela simplicidade de vida e de culto! Na verdade é isso em parte um exemplo da continuação "na doutrina dos apóstolos e no partir do pão e na oração", que se reco¬menda no livro de Atos dos Apóstolos, e que constitui um distintivo da primitiva cristandade. 3 Quinta e sexta perseguições gerais (200 - 238) A CORAGEM DOS CRENTES A grande coragem que notamos em Policarpo, Ignácio e outros, não se encontrava somente neles. Nem só os cris¬tãos, de longa experiência, ou os homens fortes e valorosos por natureza, mostraram esta resistência no sofrimento; também os tímidos e fracos mostravam igual poder, que tanto se via nas mulheres como nos homens; nas crianças de tenra idade, como nos de idade madura. A força que os tornava vencedores não provinha deles, mas de Deus, por cujo poder eram guardados pela fé (1 Pe 1.5). E certo que houve alguns que procuravam resistir ao inimigo na sua própria força, e um deles foi um frígio cha¬mado Quinto, que andou por diversos pontos a persuadir os outros para que fossem ao encontro da perseguição, mas que no primeiro momento de verdadeiro perigo, voltou as costas ao Senhor e negou-o. Não queremos duvidar da rea¬lidade do seu zelo, porém agiu sem fé. Confiou na sua pró¬pria força, em lugar de a pedir a Deus, e não se lembrou que Paulo tinha dito: "O meu poder se aperfeiçoa na fra¬queza". Deixou cair o escudo da fé, pelo qual podia ter apagado os dardos inflamados do Maligno, e valeu-se do escudo da sua própria força; e um escudo assim, como era de esperar, foi atravessado pela primeira seta do inimigo. Não aconteceu o mesmo a Perpétua, a mártir de Cartago, cujo nome deve sempre figurar em um dos primeiros lu¬gares dos anais do martirológio, pois sofreu durante o tem¬po da perseguição de que vamos falar, e que se levantou no princípio do terceiro século, quando o imperador Severo ocupava o trono dos Césares. O IMPERADOR SEVERO O imperador Severo, homem de grande sagacidade e sabedoria, era africano por nascimento, mas foi odiado pela sua perfídia e crueldade. A perseguição que teve princípio no seu reinado não foi excedida em barbaridade por nenhum dos seus antecessores, nem tampouco o foi, de certo, por nenhum dos seus sucessores. Durante algum tempo, Severo pareceu estar disposto favoravelmente aos cristãos, e até se diz que atribuiu o res¬tabelecimento duma grave doença que teve às orações de um cristão chamado Proculo. Mas a sua benevolência não durou muito, e no ano 202 a perseguição rebentou na Áfri¬ca com desusada violência. Nem os esforços de Tertuliano que tão eloqüentemente apelou para a humanidade do po¬vo, nem os solenes avisos que ele dirigiu ao prefeito da África, serviram para fazer parar a torrente da fúria popular que nesse movimento se desencadeava sobre os cristãos. Foram, um após outro, arrastados à tortura e executados, até que as palavras do grande apologista fossem realiza¬das: "A vossa crueldade será a nossa glória. Milhares de pessoas de ambos os sexos, e de todas as classes, se hão de apressar a sofrer o martírio, hão de exaurir os vossos fogos, e cansar as vossas espadas. Cartago há de ser dizimada; as principais pessoas da cidade, talvez até mesmo os vossos amigos mais íntimos e os vossos parentes, hão de ser sacri¬ficados. A vossa contenda contra Deus será em vão!" HISTORIA DE PERPETUA O nobre exército dos mártires foi, na verdade, reforçado por muitas pessoas vindas da famosa capital da África Romana, e Vivia Perpétua, que se convertera pouco tempo antes, foi uma dessas: Era uma senhora casada, de 22 anos de idade, perten¬cente a uma boa família, e bem educada, e era mãe de uma criança, que a esse tempo era ainda de colo. O seu pai era pagão, e amava-a ternamente; e quando a agarraram e le¬varam para a prisão, ele procurou por todos os meios fazê-la voltar ao paganismo. Um dia em que ele tinha sido mais eloqüente do que costumava nas suas deligências, ela, mostrando-lhe um jarro que estava perto deles, disse: "Meu pai, veja este vaso; pode porventura dar-lhe um nome diferente daquele que tem?" "Não." - disse ele. "Pois bem", disse Perpétua, "também eu não posso usar outro nome que não seja o de cristã". A estas palavras, o pai voltou-se para ela colérico, esbofeteou-a, e então reti-rou-se: e durante alguns dias não lhe tornou a aparecer. Durante esta ausência, batizou-se ela, juntamente com mais quatro jovens, um dos quais era seu irmão, e então começou a perseguição a pesar mais sobre ela, pois foi lan¬çada com os seus companheiros na masmorra comum. Não havia luz, e quase se abafava por causa do calor, e aglome-ração de gente. ROGOS DO PAI DE PERPETUA Alguns dias depois, espalhou-se o boato de que os prisio¬neiros iam ser interrogados, e o pai de Perpétua, minado de desgosto, veio da cidade, com o maior desejo de salvá-la. A maneira pela qual se aproximou dela era, desta vez, bem diferente, e as ameaças e violências deram lugar a sú¬plicas e rogos. Pediu-lhe que tivesse dó dos seus cabelos brancos, e pensasse na honra do seu nome; que se lembras¬se de toda a sua bondade para com ela, e da maneira como ele a tinha amado acima de todos os filhos. Instou com ela para que se apiedasse de sua mãe e irmãos, do seu querido filho, que não podia viver sem ela. "Não nos aniquiles a to¬dos!" - exclamou ele. Em seguida deitou-se aos seus pés, chorando amargamente, e beijando-lhe as mãos com ter¬nura; e, agarrando-se-lhe à roupa como um suplicante, disse-lhe que dali em diante, em vez de lhe chamar filha, lhe chamaria "senhora", porque ela era agora senhora do destino de todos eles. Mas Perpétua, poderosamente sus¬tentada por Deus. suportou a agonia daquele momento com inabalável coragem, apenas dizendo: "Neste momen¬to de provação, há de acontecer o que for da vontade de Deus. Fique sabendo, meu pai, que nós não podemos dis¬por de nós mesmos, mas que esse poder pertence a Deus". O DIA DO JULGAMENTO No dia do julgamento, foi conduzida ao tribunal, com os outros prisioneiros, e quando chegou a sua vez de ser in¬terrogada, o pobre velho pai apareceu com a criança, e apresentando-lhe diante dos olhos, pediu-lhe mais uma vez que tivesse compaixão deles. Valendo-se da situação, o procurador Hilariano sus¬pendeu o seu severo interrogatório, e disse-lhe com os mo¬dos mais brandos: "Poupa os cabelos brancos de teu pai! poupa o teu filhinho! oferece um sacrifício pela prosperida¬de do imperador!" Mas ela respondeu: "Não oferecerei sa¬crifício algum". Então o procurador perguntou-lhe: "És cristã?" A estas palavras o pai rompeu em altos gritos, tanto que o procurador ordenou que ele fosse lançado ao chão, e açoitado; tudo isto Perpétua presenciou com cora¬gem, reprimindo a sua dor; em seguida leram-lhe a senten¬ça de morte e conduziram-na de novo à prisão com os seus companheiros. Enquanto se aproximava o dia dos jogos, mais uma vez o velho a visitou, e com rogos ainda mais veementes pediu-lhe que tivesse dó da sua aflição, e consentisse em oferecer um sacrifício pela prosperidade do imperador; mas apesar da mágoa de Perpétua ser muito grande a sua firmeza não se abalou, e não negou a fé. Foram estas, na verdade, as mais duras provas pelas quais ela teve de passar, mas aca¬baram, por fim, e o dia do seu martírio bem depressa che¬gou. O DIA DA EXECUÇÃO Nesse dia conduziram-na para fora com o irmão, e ou¬tra mulher chamada Felicidade, e as duas foram atadas em redes, e lançadas a uma vaca brava. Os ferimentos de Perpétua não foram mortais, e a populaça farta, mas não saciada pela vista do sangue, disse ao algoz que aplicasse o golpe da morte. Como que despertando de um sonho agradável, Perpé¬tua chegou a túnica mais a si, levantou o cabelo que lhe caíra pelas costas abaixo, e depois de ter dirigido com voz fraca algumas palavras de animação a seu irmão, guiou ela mesma a espada do gladiador para o coração, e assim expi-rou. Corajosa Perpétua! O coração bate-nos apressado ao ler a tua maravilhosa história, mas ainda havemos, pela graça de Deus, de ver-te coroada e feliz na presença do teu Senhor! UMA CARTA DE IRINEU No mesmo ano (202 d.C.) morreu Irineu, bispo de Lyon, um amigo sincero das almas, e zeloso defensor da verdade. Resistiu a Vitor, que era então bispo de Roma, homem de muita arrogância e pouca piedade; e escreveu-lhe uma carta sinódica em nome das igrejas galicanas. O seguinte extrato de outra carta que Irineu escreveu a um tal Horino, cismático de Roma, será sem dúvida lida com interesse: "Vi-te", escreve ele, "na Ásia Menor, quando ainda eu era rapaz, com Policarpo, no meio do grande esplendor da corte, procurando por todos os meios ganhar a sua amiza¬de. Lembro-me muito melhor dos acontecimentos desse tempo, do que daqueles dos tempos mais recentes. Os es¬tudos da nossa mocidade, desenvolvendo-se a par da nossa inteligência, unem-se de tal modo que eu posso também indicar o próprio sítio onde o bendito Policarpo costumava sentar-se a discursar; e igualmente me lembro das suas en¬tradas, passeios, maneira de viver, a sua forma, as suas conversas com o povo, as suas afáveis entrevistas com João, segundo ele costumava contar-nos, e a sua familiaridade com aqueles que tinham visto o Senhor Jesus. "Também me recordo da maneira como costumava contar os discursos desses homens, e as coisas que eles ti¬nham ouvido dizer sobre o Senhor. Tudo que dizia respeito aos seus milagres e doutrinas era repetido por Policarpo em conformidade com as Sagradas Escrituras, como o ti¬nha ouvido das testemunhas oculares desses fatos". Irineu teve muitas contendas com os falsos ensinadores do seu tempo cujo número ia, infelizmente, aumentando com grande rapidez; e o seu zelo em pouco tempo fez cair sobre ele o ressentimento do imperador. Foi conduzido ao cume de um monte, juntamente com mais alguns cristãos, e tendo se recusado a oferecer sacrifícios, foi degolado. OS MÁRTIRES DA ALEXANDRIA Assim morreu em Alexandria, Leônidas, homem de sa¬bedoria, e alta posição, pai de Orígenes, de quem falare¬mos mais tarde. Também dois cristãos chamados Sereno, com Heraclides, Heron, e Plutarco, sendo o último um discípulo de Orígenes. Podíamos aumentar a lista com muito mais nomes, mas falta-nos espaço; e sentimos uma bendita satisfação pela idéia de que virá o dia, em que não só havemos de conhecer os seus nomes, mas também os ve¬remos coroados, e sem dúvida teremos doce comunhão com eles. A SEXTA PERSEGUIÇÃO GERAL A sexta perseguição geral começou quando o traciano Máximo subiu ao trono no ano 235 d.C. e durou três anos. Esta perseguição teve por causa imediata uma circunstân¬cia muito extraordinária. Máximo tinha um ódio terrível ao seu antecessor Alexandre, e para mostrar o seu ódio, mudou quanto possível a política do reinado de Alexandre. Aquele governador tão humano tinha tratado os cristãos com bondade; foi isto o bastante para que esse malvado traciano os tratasse com severidade. O seu primeiro edito apenas ordenava que fossem mortos os homens principais da igreja, mas a sua natureza cruel excitou-se com este ato sanguinário, e bem depressa a este edito se seguiu outro com caráter mais cruel. Durante o seu reinado, os cristãos foram conduzidos ao lugar de suplício sem serem julgados, e muitas vezes os seus corpos eram atirados nas covas, uns para cima dos outros, como cães. Os magistrados não os podiam proteger contra a selvageria da plebe, nem contra a tirania dos opressores, de modo que os seus bens torna¬ram-se a presa da população e as suas vidas estavam em perigo a todo o momento. Mas no meio de tudo isto, ainda se encontravam por toda a parte homens e mulheres fiéis à causa do cristianismo, e quanto mais editos o imperador mandava publicar, com mais resplendor brilhavam as lu¬zes que ele em vão procurava apagar. PERSEGUIDORES E PERSEGUIDOS Duzentos anos se tinham passado depois da morte de Cristo; duzentos anos de ódio e sofrimento contra a sua amada Igreja, mas ainda assim o número de crentes ia sempre aumentando. Muitas e muitas vezes o poder do In¬ferno trabalhou contra ela, mas sempre em vão. "Esta bigorna tinha gastado muitos martelos", e quando o selva¬gem traciano subiu ao trono imperial, viu que tinha a ven¬cer as mesmas dificuldades, e a subjugar o mesmo poder misterioso que iludira o mais astucioso e infatigável dos seus antecessores. Na verdade, a Igreja prosperou no meio da perseguição, e a semente do Evangelho foi espalhada por uma área cada vez maior, e regada com o sangue dos mártires; o fruto foi cento por um, apesar de os esforços que se empregaram para aniquilar o cristianismo serem terríveis e variados; atiraram-se contra uma comunidade pacífica, mas nem os editos do imperador, nem a popula¬ção irada, nem os agoureiros descontentes, nem os filósofos escarnecedores, conseguiram deter o seu desenvolvimento, e ainda menos destruí-la. Fundada sobre a Rocha, a Igreja ali ficou - como obra de Deus e a maravilha dos homens; com aquela eterna pro¬messa que é a sua forte confiança: "As portas do Inferno não prevalecerão contra ela..." 4 Sétima e oitava perseguições gerais (238-274) Ao contemplarmos a decadência do império romano, há muita coisa que nos faz lembrar a história contemporâ¬nea da Igreja de Deus. Roma tinha já passado o auge da sua glória, e infelizmente também dava-se o mesmo com a igreja quanto ao seu testemunho público aqui no mundo. O REINADO DE ALEXANDRE SEVERO O reinado pacífico de Alexandre Severo fora motivo de maior mal para a causa cristã do que todas as perseguições juntas. No seu tempo, a igreja, por falta de zelo, começou a sentir-se cansada de estar em santa separação do mundo, e os bispos cristãos, ensoberbecidos pelo seu crescente poder e importância, aceitavam colocações na corte, e começa¬ram a acumular riquezas colossais. Já haviam aparecido em diferentes partes do império alguns templos para o mais ostentoso desenvolvimento da nova religião, e as pa¬lavras do Espírito Santo "o Altíssimo não habita em templos feitos pela mão do homem" pareciam estar em gran¬de perigo de serem esquecidas. A bela simplicidade da igreja primitiva estava rapidamente desaparecendo, sendo prejudicialmente substituída pela mão do homem que em tudo se intromete. Paulo, como hábil mestre de obras, pu¬sera o fundamento, mas outros construíram sobre ele edifí¬cios que não prestavam para nada; e o ouro, a prata e as pedras misturaram-se com a madeira, o feno e a palha de uma organização sem vida. (Veja-se 1 Co 3.) Foi então que os cristãos começaram a concordar com as filosofias da Grécia e de Roma, e encontraram estímulos para a sua fé declinante no misticismo ousado do Egito e da Arábia: e, portanto, ninguém se deve admirar de que, quando uma nova perseguição rebentou, muitos dos cren-tes verdadeiros desanimaram e manifestaram receios de que Deus os estava tratando conforme os seus pecados. Impelidos por estes receios, e esquecendo a suficiência que se pode encontrar em Cristo, alguns deles negaram a fé ou se tornaram culpados de dissimulação, para assim evi¬tar maior perseguição. Por isso tornaram-se notados pelos irmãos mais fiéis, e quando voltaram, como muitos fize¬ram, para serem readmitidos à comunhão da igreja, levan¬tou-se um grande debate e houve muitas opiniões diferen¬tes. Alguns queriam readmitir os irmãos culpados, depois da simples confissão do seu erro; outros queriam um proce¬dimento mais severo, e instavam para que a readmissão não lhe fosse concedida tão depressa; enquanto outros (e estes não poucos) declaravam que o ato não tinha descul¬pas, e recusaram receber os culpados, fosse de que maneira fosse. A esta última opinião deu-se o nome de heresia de Novaciano por ser ele o seu autor; quando ele e os seus amigos fizeram prevalecer as suas opiniões seguiram-se os mais tristes resultados, por isso que muitos dos verdadei¬ros filhos de Deus, impossibilitados de desfrutar mais co¬munhão com seus irmãos, foram invadidos por uma triste¬za terrível, morrendo de remorsos. REINADO DE DECIO Décio ocupava o trono nesta ocasião, e a maneira implacável como perseguiu os cristãos deu-lhe um lugar pou¬co invejável ao lado do grande exemplar da crueldade im¬perial - Nero. Décio observava com inveja o poder crescen¬te dos cristãos, e determinou reprimi-lo. Via as igrejas cheias de prosélitos enquanto os templos pagãos estavam desertos; e isto, na sua opinião, era um insulto à religião nacional, que não podia passar despercebido. Por conse¬qüência, mandou publicar editos por toda a parte, e atiçou mais uma vez o fogo quase apagado da perseguição. Fabiano, bispo de Roma, foi o primeiro alvo do seu res¬sentimento, e foi tal a força da perseguição, que depois da sua morte ninguém teve coragem de ir ocupar o seu lugar. Orígenes no Oriente, e Cipriano no Ocidente muito fize¬ram pelo seu exemplo e ensino para dar vigor a mãos can¬sadas, e fortalecer os joelhos trêmulos, mas apenas tiveram superintendência de distritos muitos limitados, e outros bispos e pastores não foram tão fiéis. OS EDITOS DO IMPERADOR DÉCIO O imperador mandou publicar editos após editos indi¬cando aos cristãos certos dias para comparecerem perante os magistrados, e aqueles que recusavam renunciar à sua religião eram lançados em prisões e sujeitos às mais horro¬rosas torturas para os obrigar a abandonar a nova fé. Al¬guns cediam, e outros, entre os quais o infatigável Oríge¬nes, foram fiéis até o fim. Muitos desterravam-se volunta¬riamente, e no seu desterro continuavam a fazer as suas reuniões em bosques e em cavernas, sentindo-se muito mais seguros e felizes na companhia dos animais ferozes do que na sociedade de homens tão brutais como os seus per¬seguidores. Ainda assim nem sempre conseguiram desta maneira estar em segurança. Sabemos de sete soldados ro¬manos que morreram à fome numa caverna em que se ti¬nham refugiado; pois o imperador ordenara que a entrada fosse fechada. Mas, nem todos eram tão fracos, e a intrepidez de al¬guns deles durante o interrogatório foi um contraste notá¬vel com a timidez dos que já falamos. "Admiro-me", disse um deles a quem ordenavam que oferecesse sacrifício a Vênus, "que me mandeis prestar culto a uma mulher infame cujos deboches até os vossos próprios historiadores recor¬dam, e cuja vida foi toda de atos que as vossas próprias leis haviam de punir". A censura era justa, mas a verdade dita por aquela forma poucas vezes se suporta, e o orador foi condenado, pela sua ousadia, ao suplício da roda e a ser decapitado. Também uma mulher que um homem obrigou a oferecer incenso, agarrando-lhe a mão para este fim, ex¬clamou: "Não fui eu que fiz isto, mas sim o senhor", e por isto foi condenada ao exílio. UMA CARTA A CIPRIANO Um outro, que estava prisioneiro em Roma, escreveu a Cipriano: "Que mais gloriosa e bendita sorte pode ter o homem, do que no meio das torturas e com a perspectiva da própria morte, apresentar-se, pela graça divina, a Deus, o Senhor, e confessar Cristo como Filho de Deus, tendo o corpo lacerado, porém o espírito sempre livre por que se torna com-panheiro de Cristo no sofrimento? Se não temos derrama¬do o nosso sangue, estamos prontos para fazê-lo. Portanto, querido Cipriano, ora ao Senhor para que diariamente nos confirme e fortaleça cada vez mais com a força do seu po¬der; e para que Ele, como o melhor dos comandantes, con¬duza os seus soldados, a quem tem disciplinado e experi¬mentado no perigo, ao campo de batalha que está diante de nós, armados com aquelas armas divinas que nunca po¬dem ser vencidas". Na verdade, o Senhor nunca se tinha esquecido do seu povo querido, e o tempo de aflição dos seus escolhidos fora fixado por Ele. Talvez Ele visse a fraqueza deles e, por isso, encurtasse o tempo da sua provação. Assim parecia mes¬mo, porque depois de um curto reinado de dois anos e seis meses, foi Décio morto numa batalha com os godos; e as¬sim terminou a sétima perseguição geral do império. OITAVA PERSEGUIÇÃO GERAL Galo, que sucedeu a Décio, apenas reinou dois anos, e, depois da sua morte, subiu ao trono Valeriano, que começou uma nova perseguição. A princípio, estava bem disposto a favor dos cristãos, e diz-se que examinou a in¬fluência que o cristianismo exercia na moral pública, mas a sua paixão pela magia oriental dispôs o seu espírito para o ensino insidioso de um mágico egípcio, chamado Macriono, o qual se opunha ativa e amargamente à verdade; e pode-se atribuir à sua especial influência a oitava perse¬guição geral do império. O MÁRTIR CIPRIANO Logo que ocorreram os primeiros boatos da persegui¬ção, Cipriano tornou-se notável. Algumas referências à sua prévia história não deixam de ter lugar aqui. Nasceu no ano 200, descendia de uma família nobre, e recebeu uma educação adequada à sua posição. Mais tarde ensinou re-tórica publicamente e com grande sucesso em Cartago, onde vivia de uma maneira principesca. Dizem que se ves¬tia com magnificência, tinha uma comitiva suntuosa, e le¬vava uma multidão de pessoas às sua ordens, quando ia para fora. Sendo convertido do paganismo aos quarenta e cinco anos de idade, vendeu imediatamente os seus bens e deu a maior parte do produto da venda aos pobres. Progre¬dia admiravelmente no estudo da verdade, e depois de três anos; durante os quais se aplicou muito de perto à leitura das Escrituras Sagradas, fizeram-no bispo de Cartago. No reinado de Décio, foi publicada uma ordem de pri¬são contra ele, mas Cipriano retirou-se para um lugar se¬guro até passar a tempestade, e ali empregou as suas horas de descanso a escrever cartas consoladoras aos cristãos que sofriam. Não foi, contudo, o medo que o fez dar este passo, como o prova a evidência da sua conduta numa ocasião posterior. Acabara de voltar para Cartago no princípio do reinado de Valeriano, quando rebentou a peste naquela ci¬dade, e nessa ocasião pôde ele prestar valioso auxílio aos que sofriam. Exortava os cristãos a que esquecessem as injúrias que tinham sofrido, e manifestassem as graças do Evangelho, tratando, não só dos seus próprios irmãos, como também dos seus inimigos que se achassem atacados da peste. Responderam à exortação com a melhor boa vontade, e foram tratar das doentes alegremente. Quando no reinado de Valeriano a perseguição reben¬tou, Cipriano não tornou a fugir. Foi, por isso, preso por or¬dem do procônsul, e desterrado; mas tornou depois a ser chamado por mandado de um novo procônsul. Contudo, este chamamento foi simplesmente para que fosse julgado mais uma vez; e surdo aos rogos sinceros dos seus irmãos, que instavam com ele para que se escondesse até a perse¬guição ter passado, consentiu que o prendessem de novo. No dia seguinte à sua prisão, teve lugar o julgamento, e o primeiro senador de Cartago foi conduzido, por uma gran¬de guarda, ao palácio do procônsul. Foi uma cena digna de se ver, e todos os habitantes da cidade saíram para a rua para presenciar. O interrogatório foi curto, e de ambos os lados se trocaram poucas mas decisivas palavras. "És tu Tácio Cipriano, o bispo de tantos homens ímpios?" "Sou eu mesmo". "Pois bem, o mais sagrado dos imperadores ordena-te que ofereças sacrifício". "Não ofe¬reço sacrifício algum". "Pensa bem", disse o procônsul. "Executai as vossas ordens; o caso não admite considera¬ções", respondeu Cipriano. O procônsul então proferiu a sentença, concluindo com estas palavras: "Deves expiar o teu crime com o teu sangue". Cipriano exclamou: "Louva¬do seja Deus!" E nesta alegre disposição de espírito foi pouco depois conduzido a um campo vizinho, e ali decapi¬tado. CIRILO, UM JOVEM MÁRTIR Até as próprias crianças não foram isentas dessa perse¬guição, e muitas, pela graça divina, testemunharam uma boa confissão. Cirilo de Alexandria, um rapaz de tenros anos, foi um destes; e a realidade da sua fé era tal, que nem ameaças nem bofetadas foram capazes de o abalar, nem mesmo a perspectiva de uma morte lenta e dolorosa. Foi insultado por crianças de sua idade, e até o pai o expulsou de casa por ele não querer renunciar à sua fé e reconhecer o imperador como Deus. A sua conduta na presença do ma¬gistrado foi igualmente interessante e conscienciosa: "Rapaz", disse-lhe o bondoso pagão, "estou pronto a perdoar-te, e a consentir que teu pai te leve outra vez para casa, e podes mais tarde herdar os seus bens; para isso basta que tenhas juízo e olhes pelos teus próprios interesses". Mas ele recusou com firmeza: "Estou pronto a sofrer", disse ele, "e Deus há de levar-me para o Céu. Não me importo de ter sido expulso de casa: hei de ter um lar melhor. Não tenho medo de morrer; a morte vai apenas conduzir-me a uma vida melhor". Como o governador não pudesse persuadi-lo a que se re¬tratasse, disse aos oficiais que o levassem para o poste e lhe mostrassem a palha e o feixe de lenha, esperando que isso o intimidasse, mas o rapaz resistiu à prova, e não manifes¬tou sintoma algum de medo. O bom Pastor conservou-se muito próximo da sua ovelha atribulada, e não consentiu que o temor entrasse no seu coração; e o povo só pôde cho¬rar e maravilhar-se. Quando voltou à presença do governa¬dor e este lhe perguntou: "Estás agora resolvido a mudar de idéia?" - ele respondeu com intrepidez: "O vosso fogo e a vossa espada não me podem molestar: vou para um lar mais feliz; queimai-me depressa, para que eu chegue lá mais cedo"; e vendo lágrimas nos olhos de muitos especta¬dores, disse: "Deveis estar contentes, e decerto estaríeis, se conhecesseis a cidade para onde vou". Depois disto foi no¬vamente conduzido ao poste e ali amarrado; e puseram os cavacos e a palha em volta dele, e acenderam-nos. Mas os sofrimentos da criança bem depressa cessaram, e antes de o fumo da fogueira se dissipar completamente, já ele esta¬va além do alcance do martírio e daquela terrível prova, e tinha entrado no "lar melhor" de que ele falara. MARTÍRIO DE LOURENÇO Um diácono da igreja em Roma, chamado Lourenço, foi outro mártir desta perseguição. Sendo chamado para dar contas ao imperador dos tesouros da igreja, reuniu al¬guns dos pobres mais velhos e desamparados, e apresen¬tou-os ao magistrado, dizendo: "Eis aqui os tesouros da igreja!" Zangado e contrariado com estas palavras, o ma¬gistrado entregou-o aos algozes, que lhe bateram com varões de ferro, deslocando-lhe os membros, e por fim esten¬deram-no numas grelhas e o assaram lentamente. MORTE DO IMPERADOR VALERIANO Valeriano, contudo, foi feito prisioneiro por Sapor, rei dos persas, depois de ter administrado os negócios do im¬pério por espaço de quatro anos, e isto pôs fim a esta perseguição. A igreja teve sossego durante perto de quinze anos, findos os quais se tornou a manifestar o incansável ódio dos homens pelo Evangelho, e uma nova perseguição geral rebentou. NO REINADO DE AURELIANO A perseguição que começou no reinado de Aureliano, durou apenas alguns meses; porque os atos sanguinários que ele praticara não tinham ainda alcançado os limites do seu domínio quando a mão do assassino o prostrou. A tem¬pestade parecia realmente aproximar-se com rapidez e o horizonte tornou-se negro e carregado por algum tempo, mas depois de alguns trovões que anunciavam um tempo¬ral, as nuvens espalharam-se sem descarregarem, e os cris¬tãos puderam outra vez respirar livremente. Mas se há pouco que dizer a respeito de perseguição, as memórias daquele tempo referentes à Igreja estão cheias de tristes interesses. Foi durante o reinado de Aureliano que os cristãos pediram o arbítrio do poder civil para os ne¬gócios da igreja; e isto, de mais a mais, num caso de disci-plina importante. No tempo dos apóstolos tinham eles pe¬dido o auxilio de magistrados para regularem algumas questões particulares, e por esse motivo foram asperamen¬te censurados por Paulo (1 Co 6), mas que teria este dito agora, vendo que se apelava para o poder civil para decidir uma questão que afetava de uma maneira tão solene as verdades fundamentais da religião cristã? PAULO DE SAMOSATA Paulo de Samosata, um pagão ímpio e vão, o qual por meios incompreensíveis alcançou o título de Bispo de Antioquia, espalhou uma heresia abominável a respeito da pessoa do Senhor Jesus. O seu ensinamento excitou, nessa ocasião, a atenção dos cristãos em toda a parte oriental do império e foi convocado um conselho para averiguar o caso. Reuniram-se em Antioquia pastores e bispos que vi¬nham de toda a parte, e depois de investigarem com o má¬ximo cuidado, decidiram unanimemente expulsar dentre eles aquele homem ímpio. Teria sido uma felicidade para a igreja se o caso terminasse aqui, mas não sucedeu assim. Esse homem recusou-se a ceder à autoridade da igreja, e o conselho apelou para o imperador, que enviou a questão para os bispos de Itália e Roma; e como eles confirmassem a decisão dos seus irmãos, o altivo bispo nada mais teve de fazer senão retirar-se em silêncio, sob o peso de uma dupla censura. MUDANÇA DA POLÍTICA DE AURELIANO Foi só depois deste acontecimento que Aureliano mu¬dou a sua atitude para com os cristãos; e nunca se pôde afirmar positivamente qual foi a causa da mudança dessa política. Eusébio atribui isso, de uma maneira vaga, à in¬fluência de certos conselheiros, mas não explica quem eram. nem tampouco como foi que conseguiram ganhar o apoio do imperador. "Mas", disse ele, "quando Aureliano estava já quase, por assim dizer, no ato de assinar o decre¬to, a vingança divina alcançou-o... provando, assim, a to¬dos, que nenhum privilégio pode ser concedido aos gover¬nadores do mundo contra a Igreja de Cristo, a não ser pela permissão da poderosa mão de Deus". 5 Nono e décima perseguições gerais (274-306) DECADÊNCIA ESPIRITUAL DOS CRISTÃOS Depois dum descanso de uns vinte e oito anos, tornou a mesquinha mão do homem a estender-se para continuar a perseguição, e o imperador fez o último e desesperado es¬forço para exterminar a religião tão odiada. Historicamen¬te, foi este o último e decisivo conflito entre o paganismo e o cristianismo. Durou dez anos, e foi sem dúvida a mais desoladora de todas as perseguições. A segurança tranqüi¬la, que a Igreja desfrutara desde a morte de Aureliano ti¬nha produzido uma tal inação nos cristãos, que a sua con¬dição levantou um certo sentimento de vergonha no cora¬ção de muitos, misturado com o receio de que o desagrado do Senhor estivesse pendente sobre as suas cabeças. Em conseqüência da sua infidelidade, a Igreja tinha diminuído muito em poder espiritual, mas tinha aumentado em so¬berba e ambição mundana; e a simplicidade de seu culto quase se ofuscou por ritos mais judaicos que cristãos. E isto ainda não era tudo. Muitos empregavam os seus dons espirituais em ostentação em vez de os empregarem em edificação; e aqueles que tinham o privilégio de poder alimentar o rebanho de Deus, descuravam o seu encargo sagrado e ocupavam-se na acumulação de riquezas. Os bis-pos, cujo verdadeiro dever era servir ao povo e trabalhar pessoalmente entre os pobres e os doentes, tornavam-se numa grande ordem sacerdotal, e procediam como "tendo domínio sobre a herança de Deus". Estes tinham emprega¬dos às suas ordens e já não seguiam a hospitalidade de que Paulo falara como sendo uma qualidade indispensável aos bispos, mas recebiam um salário, tornando-se dependen¬tes dos ganhos alheios. Antes de ter passado um século, ouviu-se um pagão di¬zer: "Façam-me bispo de Roma, que eu logo me tornarei cristão". Na verdade, a distinção entre o clero e os leigos proce¬dia deste sistema de tirania espiritual; e daqui provinham por sua vez, aqueles medonhos abusos da Idade Média, que mais tarde foram condenados em parte (se bem que por razões políticas) pelo arrogante e ousado Hildebrando, quando subiu à cadeira papal. Além disso, a paz inteira das assembléias era constan¬temente perturbada pelas discussões. Havia contínuas dis¬putas entre os bispos e os presbíteros, por causa das altivas pretensões dos primeiros, que exigiam superioridade na igreja, superioridade esta que os últimos não queriam de modo algum conceder. Nos primeiros tempos do cristianis¬mo aqueles dois títulos haviam sido considerados iguais, e só perto do fim do segundo século é que o costume conse¬guiu colocar um acima do outro. A controvérsia foi longa e amarga, e enquanto os pastores assim lutavam uns com os outros, as ovelhas morriam de fome, e os lobos daninhos estavam-se introduzindo no meio delas, não poupando o rebanho. PERSEGUIÇÃO NO REINADO DE DIOCLECIANO No meio deste triste estado de coisas, começou a perse¬guição no reinado de Diocleciano. Este tirano, soberbo e selvagem, ocupava o trono havia já dezenove anos, e du¬rante esse tempo tinha associado ao seu governo três outros opressores como ele: Maximiliano, Galério, e Constantino Cloro, pai de Constantino, o Grande. Galério, que odiava os cristãos, era genro do imperador, e exercia uma influência fatal sobre ele. Persuadiu-o de que o cristianismo se opunha aos melhores interesses do povo, e que o meio de fazer reviver as antigas glórias do im¬pério era arrancar pela raiz aquela odiosa religião e des¬truí-la completamente. Para melhor atingir o seu fim, procurou o auxílio dos sacerdotes pagãos e dos mestres de filosofia que, pelas suas palavras e influências, bem depressa levaram o imperador a partilhar das idéias deles. Publicaram-se então quatro editos ao todo; o primeiro, ordenando a destruição de todas as igrejas e dos escritos sagrados - edito este sem dúvida instigado pelos filósofos; o ! segundo, determinando que todos os que pertencessem às ordens, clericais fossem presos; o terceiro, declarando que nenhum seria solto a não ser que consentisse em oferecer sacrifício; e o quarto mandando que todos os cristãos em qualquer condição em toda parte do império, oferecessem sacrifício e voltassem a adorar os deuses, sob pena de mor¬te em caso de recusa. Logo que o primeiro edito apareceu em Nicomédia (a nova capital do império) foi rasgado por um cristão indig¬nado. No lugar dele deixou estas palavras de desprezo: "São estas as vitórias dos imperadores sobre os godos". Este ato de zelo custou-lhe bastante caro, pois sofreu as torturas que lhe infligiram: Foi queimado vivo num fogo lento. Tendo rebentado uma conflagração no palácio do im¬perador, acusaram os cristãos do ato, e por isso aumentou a violência da perseguição. Em menos de quatorze dias, o palácio estava outra vez em chamas, e a cólera de Diocleciano que já então estava muito inquieto, tornou-se terrí¬vel. Os oficiais da casa imperial, e todos quantos moravam no palácio, foram expostos às mais cruéis torturas. Diz-se que por ordem, e em presença de Diocleciano, Prisca e Va¬léria, (mulher e filha do imperador) foram obrigadas a ofe¬recer sacrifícios; os poderosos eunucos Doroteo, Jorgino e Andrias sofreram a morte; Antino, bispo de Nicomédia, foi decapitado. Muitos foram executados, outros queimados, outros amarrados e com pedras atadas ao pescoço levados em botes para o meio do lago, e ali lançados à água. Ao oriente e ocidente de Nicomédia as perseguições tor¬naram-se violentas e furiosas, e a única província romana que escapou a esta medonha tempestade foi a Gália. Era ali que residia Constantino, o único governador que prote¬gia os cristãos; os outros eram implacáveis e não tinham remorsos. Mas Diocleciano sentiu-se por fim cansado de tão medonho trabalho, e no ano seguinte entregou as ré¬deas do governo. O seu colega Maximiano seguiu-lhe o exemplo imediatamente, e Galério reinou como único se¬nhor do Oriente até que seu sobrinho, um monstro igual a ele, obteve o governo da Síria e do Egito sob o título de Maximiano II. Ser-nos-á impossível falar de todos os mártires cujos nomes estão ligados a esta perseguição, pois devem ter sido contados por milhares durante estes tristes dez anos. No Egito, os cristãos sofreram o martírio aos grupos, tendo havido dia de sessenta a oitenta mortes. Romano, o diácono de Antioquia, quando foi ameaçado com a tortura, exclamou: "Oh! imperador, recebo gostosamente a tua sentença; não me recuso a ser torturado a favor dos meus irmãos, ainda que seja pelos meios mais cruéis que possas inventar". Quando o executor hesitava em continuar o seu terrível trabalho, em conseqüência de a vítima pertencer à nobre¬za, Romano disse: "Não é o sangue dos meus antepassados que faz com que eu seja nobre, mas sim a minha profissão cristã". Depois de ter recebido muitas feridas no rosto, ex-clamou: "Agradeço-te capitão, por me teres aberto tantas bocas pelas quais eu possa pregar o meu Senhor e Salvador Jesus Cristo". MAIS MÁRTIRES Outro a quem perguntaram durante o seu interrogató¬rio: "Por que é que conservas as Escrituras que são proibi¬das pelo imperador?" Respondeu: "Porque sou cristão; nas Escrituras está a vida eterna: e quem as despreza perde essa vida eterna". Uma menina de treze anos, filha de um fidalgo de Emé¬rita, dava louvores a Deus no meio das torturas, dizendo: "Oh! Senhor eu não te esquecerei! Que boa coisa é para aqueles que se lembram dos teus triunfos, oh! Cristo, e que atingem estas altas dignidades!" Outra também, uma senhora rica chamada Julieta, enquanto as chamas a en¬volviam, exclamava: "Oh! minhas irmãs, abandonai a vida que gastais nas trevas, e amai a Cristo - o meu Deus, meu Redentor, meu Consolador, e que é a verdadeira Luz do mundo. Que o Espírito de Deus vos faça convencer de que há um outro mundo no qual os adoradores dos ídolos e demônios hão de ser eternamente atormentados, e os ser¬vos do Deus verdadeiro serão eternamente coroados". Foi este o seu fiel testemunho. MORTE DOS PERSEGUIDORES Façamos a comparação entre essas cenas triunfantes e o fim miserável dos grandes perseguidores do cristianismo. Nero, Diocleciano, e Maximiano suicidaram-se. Domiciniano, Cômodo, Maximínio e Aureliano foram assassina¬dos. Adriano morreu em agonia gritando: "Quão desgraça¬do é procurar a morte e não a encontrar! "Décio, cuja reti¬rada foi impedida durante uma emboscada, morreu mise-ravelmente, e o seu corpo foi presa de abutres e animais fe¬rozes. Valeriano depois de ser preso por Sapor rei da Pér¬sia, foi empregado como um banco onde esse rei punha os pés quando montava o seu cavalo; e depois de sofrer du¬rante sete anos este e outros insultos, foram-lhe arrancados os olhos e esfolaram-no vivo. Maximínio teve uma morte lenta e horrorosa; e, finalmente, Galério, o príncipe dos perseguidores, foi atacado de uma doença terrível que o condenou a um contínuo martírio. Foram consultados os médicos, em vão, e assim como Antíoco Epifânio e Herodes, que foram tão cruéis quanto ele, foi o seu corpo comi¬do de bichos. Mas o período da história que está indicado na carta es¬crita ao anjo da igreja em Esmirna (Ap 2.8-11) tinha chegado ao seu fim. Aquela mística intimação do cabeça da igreja: "Vós tereis tribulações por dez dias", tinha sido cumprida; e as dez perseguições do império romano pagão tinham passado à história. A décima durou dez anos, mas mesmo essa acabou, e então o período que corresponde ao tempo indicado na carta dirigida ao anjo da igreja em Pérgamo (Ap 2.12-17), quando o leão se tornou em serpente e os adversários de fora deram lugar aos sedutores de dentro, começou: Constantino, o Grande, de quem fala a história, tinha subido ao trono. 6 Quarto século da Era cristã (306-375) CONSTANTINO O GRANDE A subida ao trono de Constantino, o Grande, marca uma nova era na história da igreja e por isso é conveniente examinar rapidamente a sua carreira pública. Nasceu na Grã-Bretanha, e dize-se que a sua mãe era uma princesa britânica. Depois da morte de seu pai que foi muito esti¬mado pela sua justiça e moderação, as legiões romanas es¬tacionadas em York saudaram-no como César e vestiram-no com a púrpura imperial. Apesar de Galeriano se ofender com esta aclamação, ele não estava preparado para se ar¬riscar numa guerra civil, opondo-se a ela; e portanto ratifi¬cou o título que o exército dera a seu general, e concedeu-lhe o quarto lugar entre os governadores do Império. Du¬rante os seis anos que se seguiram administrou Constanti¬no a Prefeitura da Gália com uma perícia notável, e ao fim desse tempo tomou posse de todo o império romano, visto que Maximínio e Galério, no intervalo, tinham morrido. Apenas restava agora um competidor ao trono, Maxêncio, um forte defensor do paganismo, e logo que Constantino obteve conhecimento exato dos seus recursos, marchou contra ele com um grande exército, e venceu-o completa¬mente. A questão de Constantino ser ou não realmente cristão, sempre tem sido ponto de dúvida entre os escritores sagra¬dos, e têm-se apresentado muitas e diferentes razões como prova de que adotou a religião cristã. Mas se efetivamente se converteu, podemos afirmar positivamente que não foi antes de marchar contra Maxêncio, tendo, segundo se diz, presenciado durante essa marcha, um fenômeno extraordi¬nário no firmamento, e sido favorecido com uma visão no¬tável. Até esse tempo estava ainda indeciso entre o paga¬nismo e o cristianismo. TEMPOS NOVOS PARA A IGREJA Tinha agora chegado um tempo muito extraordinário para o povo de Deus... A religião de Cristo, saindo como do deserto e das prisões, tomou posse do mundo. Até nas es¬tradas principais, nos íngremes cumes dos montes, nos fundos barrancos e nos vales distantes, nos tetos das casas, e nos mosaicos dos sobrados se via a cruz. A vitória era completa e decisiva. Até nas moedas de Constantino se via o lábaro com o monograma de Cristo levantando-se acima do Dragão vencido. Do mesmo modo o culto e o nome de Jesus se exaltaram acima dos deuses vencidos do paganis¬mo. De fato começava uma ordem de coisas inteiramente nova, e o imperador romano tornou-se o principal da igre¬ja. A administração do estado e dos negócios civis foi reu¬nida com o governo da igreja e podia-se presenciar o espe¬táculo extraordinário de um imperador romano presidir os concílios da igreja e tomar parte nos debates. Em geral os cristãos não se ressentiam desta intrusão, pelo contrário consideravam-na como um auspicioso e feliz presságio, e em lugar de censurar o imperador pelo seu intrometimento, receberam-no como bispo dos bispos. O povo de Deus aceitou a proteção de um estado semi-pagão, e o cristianismo sofreu a maior degradação possível com a proteção de um potentado do mundo. EFEITOS DA UNIÃO ENTRE A IGREJA E O ESTADO O efeito desastrado desta primeira união da igreja com o estado fez-se sentir imediatamente. Levantaram-se con¬tendas, e o imperador foi nomeado árbitro pelas partes contendoras. Mas logo que dava a sua decisão sobre a ques¬tão, esta continuava rejeitada com desprezo pela parte cu¬jas razões eram desatendidas. Repetiu-se a mesma coisa uma vez e outra, até que o imperador se indignou, e recor¬reu a meios violentos para reforçar o seu poder. Isso prova¬va até a evidência e inutilidade e a inconveniência daquela proteção a que os cristãos de tão boa vontade, mas tão ce¬gamente se submeteram. Até então tinham os concílios da igreja sido compostos de bispos e presbíteros de uma província, mas durante o reinado de Constantino foram consagradas as assembléias, que o imperador podia reunir e dissolver à vontade! Cha¬mavam-se concílios ecumênicos ou gerais, e tinham por fim a discussão das questões mais importantes da igreja. O PRIMEIRO CONCILIO ECUMÊNICO A primeira destas Assembléias reuniu-se em Nicéia, na Bitínia, para o julgamento de um tal Ário, que tinha esta¬do a ensinar que nosso Senhor fora criado por Deus como qualquer outro ser, sujeito ao pecado e ao erro, e que, por conseqüência, não seria eterno como o Pai. Foi a isso que Constantino chamou uma ninharia, quando o informaram da heresia; o concilio porém, com poucas exceções, deu-lhe o nome de horrível blasfêmia. Os bispos sentiram tanto a indignidade que Ário fizera pesar sobre o bendito Senhor, que tapavam os ouvidos enquanto ele explicava as suas doutrinas, e declararam que, quem expunha tais ensina¬mentos, era digno de anátema. Como repressão às heresias crescentes foi escrito a célebre confissão de fé, conhecida como o Credo de Nicéia, no qual está clara e inteiramente anunciada a doutrina das Escrituras Sagradas com refe¬rência à divindade do Senhor. Ário e seus adeptos recebe¬ram ao mesmo tempo sentença de desterro, e possuir ou fa¬zer circular os seus escritos era considerado como grande ofensa. A conduta posterior do soberano mostrou que o seu modo de proceder naquela ocasião não obedecia a nenhu¬ma convicção profunda nem determinada. A pedido de sua irmã Constância, cujas simpatias pelo partido ariano eram bastante fortes, ordenou que o heresiarca voltasse do exí¬lio, e revogou a interdição dos seus escritos. Ário foi, por¬tanto, plenamente restituído ao favor do imperador, e tra¬tado na corte com todas as distinções. ATANÁSIO, BISPO DE ALEXANDRIA Mas o triunfo de Ário não foi completo. Encontrou um adversário poderoso e infatigável em Atanásio, bispo de Alexandria, o qual já tinha derrotado durante as reuniões do concilio em Nicéia, e que apesar de ser apenas diácono naquele tempo, tomara parte notável na discussão, e desde então sempre continuara a ser acérrimo defensor da verda¬de e um ativo antagonista das malévolas intenções dos arianos. Um mandato imperial de Constantino para que os he-reges excomungados fossem admitidos à igreja, foi recebi¬do pelo bispo com um desprezo deliberado e firme: não queria submeter-se a qualquer autoridade que procurasse pôr de parte a divindade do seu Senhor e Salvador. Contu-do, os seus inimigos estavam resolvidos a levar por diante os seus propósitos e aquilo que não puderam obter por bons meios tentaram alcançar por meios infames. Fizeram uma acusação horrível contra o bispo, no sentido de ter ele cau¬sado a morte de um bispo miletino chamado Arsino, de cuja mão, diziam eles, se serviu para fins de feitiçaria. Foi, por conseqüência, intimado a responder perante um conci¬lio em Cesaréia, pela dupla acusação de feitiçaria e assassínio: mas Atanásio recusou-se a comparecer ali por ser o tribunal composto de inimigos. Foi pois convocado outro concilio em Tiro, e a este assistiu o bispo. A mão que devia ter servido para prova do crime apareceu no tribunal, mas infelizmente para os acusadores o dono da mão, o bispo as¬sassinado, também lá estava vivo e ileso! DESTERRO DE ATANASIO Ainda assim, esta farça não impôs aos seus adversários o silêncio que a vergonha devia produzir, e apressaram-se em preparar uma nova acusação. Afirmaram que Atanásio ameaçava reprimir a exportação do trigo de Alexandria para Constantinopla, o que traria a fome para esta cidade, pensando eles, e com razão, que bastava só atribuir-lhe este mau procedimento para levantar a inveja e desagrado do imperador, cujos maiores interesses estavam ali con¬centrados. Os seus planos tiveram bom êxito. Com esta simples acusação, pois a verdade dela nunca foi provada, obtiveram uma sentença de desterro, e Atanásio foi man¬dado para Treves, no Reno, onde se conservou dois anos e quatro meses. MORTE DE ÁRIO Mas o desterro do bispo fiel não assegurou os resultados pelos quais o partido de Ario estava a combater. Os Cris¬tãos de Alexandria também tinham sido muito bem ins¬truídos nas verdades das Escrituras Sagradas, e conserva¬vam-nas com tal amor, que não as abandonaram depois do seu ensinador partir. Não queriam ligar-se a compromisso algum e até mesmo quando Ario subscreveu uma fé orto¬doxa, o novo bispo, um velho servo de Deus chamado Ale¬xandre, duvidou da sua sinceridade, e não quis aceitar a sua retratação. Constantino teve de intervir novamente neste caso, e mandando chamar o bispo, insistiu para que Ario fosse recebido em comunhão no dia seguinte. Muitos viram nisto uma crise nos negócios da igreja, e os cristãos de Alexandria esperavam pelo resultado com muita ansie¬dade. Alexandre sentiu a sua fraqueza, e pensamentos in-quietadores lhe assaltaram o espírito; entrou na igreja e apresentou o seu caso diante do Senhor. A oração era o seu último recurso, mas não foi um recurso vão nem estéril. Os arianos já exultavam, e enquanto o bispo estava de joelhos diante do altar levaram eles o seu chefe em triunfo pelas ruas. De repente cessaram as ovações. Ario entrara em uma casa particular e ninguém parecia saber para quê. Todos esperavam, e se admiravam, mas esperavam em vão; o homem, cujo regresso aguardavam, tinha-se retira¬do dos seus olhares para nunca mais aparecer. Teve a mes¬ma sorte de Judas, e o grande herético estava morto. Atanásio disse mais tarde que a morte de Ário era uma refuta-ção suficiente da sua heresia. MORTE DE CONSTANTINO, O GRANDE Constantino não sobreviveu muito tempo a este acon¬tecimento. Morreu em 337 d.C. com sessenta e quatro anos de idade, tendo reinado quase trinta e um anos. E sua le¬gislação geral, diz um escritor moderno, manifesta a in¬fluência dos princípios cristãos; e o efeito destas leis huma-nitárias havia de ser sentido muito além do círculo da co¬munidade cristã. Decretou leis para que se guardasse melhor o domingo e contra a venda de crianças como escravos; e também con¬tra o roubo de crianças com o fim de se venderem e muitas outras leis de caráter tanto social como moral. Mas o fato mais importante e de maior influência do seu reinado, cheio de acontecimentos, foi a destruição dos ídolos e a exaltação de Cristo. Outro fato de importância, sob o pon¬to de vista cristão, foi a conversão dos etíopes e ibérios, que, segundo se diz, receberam o Evangelho durante esse mesmo tempo. DIVISÃO DO IMPÉRIO O império estava agora dividido entre os três filhos de Constantino, o Grande, ficando Constantino com a Gália, Espanha e a Bretanha; Constâncio com as províncias asiá¬ticas, e Constante, com a Itália e a África. Constantino favoreceu o partido católico ou ortodoxo, e fez voltar Atanásio do exílio, mas foi morto no ano 340, quando invadia a Itália. Constante, que tomou posse dos seus domínios, também seguia a causa dos católicos e foi amigo de Atanásio, porém Constâncio e toda a sua corte tomaram o partido dos arianos. UMA GUERRA RELIGIOSA Começou então uma guerra religiosa entre os dois ir¬mãos, e como geralmente acontece nas guerras religiosas, foi esta também notável pela crueldade e injustiça de ambos os lados. Entretanto, Atanásio foi novamente degredado, pelos esforços de Constâncio e dos bispos arianos; e Gregório de Capadócia, homem de caráter violento, foi colocado à for¬ça no seu lugar. Este procedimento iníquo deu ocasião a desordens e a cenas violentas, e tiveram de pedir auxílio à tropa para manter o bispo intruso na colocação que lhe ti¬nham dado. Foram depois convocados muitos e vários concílios, e publicados cinco credos diferentes, em outros tantos anos, mas parece que com pouco resultado. Em to¬dos estes concílios foi sempre confirmado a ortodoxia de Atanásio, porém não fizeram justiça ao velho bispo en¬quanto Gregório viveu. Mas depois da morte deste foi rein¬tegrado no seu lugar com grande alegria de todos aqueles que apreciavam a verdade e se agarravam à boa doutrina. MORTE DE CONSTANTE Constante, que desde o princípio se tinha mostrado um verdadeiro amigo de Atanásio, morreu no ano 359, e os arianos, com a proteção de Constâncio renovaram as suas perseguições. Tendo sido expulso pela terceira vez do seu lugar, Atanásio retirou-se voluntariamente para o exílio, e entrou, durante algum tempo, num refúgio dos desertos do Egito, onde pela meditação e oração se preparou para pos¬terior conflito. E, aqueles que professavam as suas doutri¬nas eram perseguidos com rigor devido à ascendência dos arianos. Por isso se dizia por toda a parte que os tempos de Nero e Diocleciano tinham voltado. MORTE DE CONTÂNCIO Constâncio morreu no ano de 361, e teve por sucessor Juliano, que tornou a chamar os bispos desterrados por Constâncio; mas não foi de certo por simpatia pelas suas doutrinas, porque ele pouco depois caiu no paganismo, e distingüiu-se tanto pelos seus esforços em restaurar a ido-latria, que mereceu o nome de Juliano, o Apóstata. Afir¬mou que o julgamento de Deus sobre os judeus, como esta¬vam preditos nos evangelhos e em outras partes, eram uma fábula, e fez uma ímpia tentativa de provar a sua afirmati¬va, mandando uma expedição à Palestina para reconstruir o templo. Mas os seus planos frustraram-se de uma manei¬ra milagrosa. Diz a tradição que saíam da terra línguas de fogo, fazendo ura barulho medonho, o que fez afastar os operários daquele lugar cheios de terror. Abandonaram portanto o trabalho; e as intenções ímpias de Juliano não vingaram. O MÁRTIR BASÍLIO Durante o reinado deste imperador, um cristão chama¬do Basílio tornou-se notável pelas suas denúncias destemi¬das do arianismo e da idolatria. O bispo ariano de Constantinopla ordenou-lhe que desistisse de pregar, mas Basí¬lio continuou apesar da ordem recebida/Afirmava ele que recebia ordens do Senhor e não dos homens. O bispo então denunciou-o como perturbador da ordem pública; mas o imperador (a quem a denúncia era dirigida se estava preparando nessa ocasião para uma expedição à Pérsia e não prestou a mínima atenção a esta acusação. Contudo, mais tarde, o zelo de Basílio contra o paganismo, fez cair sobre ele a indignação dos pagãos e foi levado à presença de Saturnino, governador de Ancira, que o man¬dou para o cavalete. A sua firmeza e paciência durante a tortura foi a admiração de todos quantos o viram, e foram imediatamente contar isto ao imperador. O interesse deste não se excitou menos do que a admiração dos seus súditos, e deu ordem para que o prisioneiro fosse trazido à sua pre¬sença. Basílio, que se interessava pelo bem do imperador, aproveitou essa ocasião para proclamar o Evangelho na sua presença e o avisou do perigo em que estava, devido ao seu desprezo pelo Filho de Deus. A censura, aplicada com tanta fidelidade, não deu, infelizmente, bom resultado; Juliano recebeu-o com desprezo, e mostrou o ódio que ti¬nha à religião cristã pela maneira com que tratou o ministro dela. Ordenou que Basílio fosse novamente conduzido a sua prisão e que todos os dias lhe separassem a carne dos ossos, até que o seu corpo estivesse completamente despe¬daçado. Esta sentença desumana foi cumprida, e o bravo mártir expirou na tortura no dia 28 de junho do ano 362 d.C. MORTE DE JULIANO Juliano não sobreviveu muito tempo a isso. No mesmo mês, quase no mesmo dia (26 de junho) do ano seguinte foi mortalmente ferido numa escaramuça com os asiáticos; e, quando jazia por terra, fraco e perdido, foi visto estender a mão para o Céu e murmurar estas palavras: "0 galileu, venceste!", e assim expirou. UM IMPERADOR VERDADEIRAMENTE CRISTÃO Joviano, que lhe sucedeu, foi talvez o primeiro governa¬dor do império romano verdadeiramente cristão: mas o seu reinado foi curto. Quis que Atanásio, que voltara de Ale¬xandria depois da morte de Juliano, fosse o seu mestre e conselheiro; e bem depressa ficou tão seguro da verdade que nem padres pagãos, nem arianos hereges, tinham po¬der algum sobre ele. Mas usou de tolerância para com to¬dos e, apesar de se ligar à verdade, sempre se viu rodeado de alguns que se opunham a ela. Na verdade, se podemos acreditar em Sócrates, que para autoridade cita o filósofo Temíscio, os adeptos do grande heresiarca Ário eram governados mais por conveniência do que por consciência, e re¬gulavam as suas opiniões pelas do poder reinante. Depois de um feliz reinado de oito meses, Joviano morreu por asfi-xia, em 17 de fevereiro do ano 364. Os seus sucessores, Valenciano e Valente, prometiam seguir os passos de seu pai mas Valente foi logo levado para o partido ariano por instigação de sua mulher, e foi batizado por um bispo ariano. MORTE DE ATANÁSIO Renovou em seguida os ataques a Atanásio e seus adeptos e o velho bispo depois de ter estado escondido por espa¬ço de quatro meses no sepulcro de seu pai teve de fugir ou¬tra vez de Alexandria. Contudo, a opinião popular não po¬dia consentir que ele estivesse muito tempo no exílio, e foi quase imediatamente chamado de novo. Pouco depois, no ano 373. terminou pacificamente a sua longa e agitada car¬reira. A sua morte foi considerada calamidade pública por todos os que velavam com solicitude os interesses do seu divino Mestre. Foi por pugnar pela grande verdade da Trindade que o venerável bispo fora desterrado três vezes, e acusado de herege pelos falsos padres de Ário.